quinta-feira, 12 de novembro de 2009

* CEM ANOS DE ROSA

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Como médico conheci o valor místico do sofrimento: como rebelde o valor da consciencia; como soldado o valor das proximidade da morte.


Cem anos de João Guimarães Rosa emocionando o mundo com sua literatura. Caipira para muitos, mas erudito e universal. Fabulista por natureza. Defendia o autor o homem do sertão.



Ano passado, atendendo a pedido de amigos lá de Cordisburgo, que realizou uma grande festa para comemorar os 100 anos de nascimento de seu ilustre Joazito, querido por todos, prometi também marcar a data com um trabalho literário.

Pensei comigo mil coisas: conto, crônica, ensaio biográfico - que já tem demais. Então decidi por uma coletânea diferente com textos sobre o centenário de Rosa divulgado nos jornais e revistas do Brasil. Idéia pensada, ruminada e decidida o negócio era ter acesso ao material publicado pela imprensa. Mais de um ano garimpando e contando com a ajuda de amigas e amigos que me enviavam material. E de tudo que li, tudo muito bem escrito, optei pelo conjunto de textos reunidos no Suplemento Literário de Minas Gerais. Para mim, nessa ocasião, o melhor retrato de Guimarães Rosa contemporâneamente escrito por autores que deram o melhor de si para falar o que sente sobre esse grande escritor mineiro.

Por isso, tudo ao pé da letra compiladamente, e respeitando todos os créditos, claro, bloguei esse momento numa coletânia da mais alta beleza. E aí está na Rede de Internet á disposição de quem quiser acessar e saber mais João Guimareas Rosas, sem ter que pagar nada por isso.

Boa leitura.

Welington Almeida Pinto

* DADOS BIOGRÁFICOS

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João Guimarães Rosa


"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."




João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908 e era o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias.

Joãozito, como era chamado, com menos de 7 anos começou a estudar francês sozinho, por conta própria. Somente com a chegada do Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, em março de 1917, pode iniciar-se no holandês e prosseguir os estudos de francês, agora sob a supervisão daquele frade.

Terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; em Belo Horizonte, para onde se mudara, antes dos 9 anos, para morar com os avós. Em Cordisburgo fora aluno da Escola Mestre Candinho. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime de internato, visto não ter conseguido adaptar-se — não suportava a comida.

De volta a Belo Horizonte matricula-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães e, imediatamente, iniciou o estudo do alemão, que aprendeu em pouco tempo. Era um poliglota, conforme um dia disse a uma prima, estudante, que fora entrevistá-lo:

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.

Em 1925, matricula-se na então denominada Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, com apenas 16 anos. Segundo um colega de turma, Dr. Ismael de Faria, no velório de um estudante vitimado pela febre amarela, em 1926, teria Guimarães Rosa dito a famosa frase: "As pessoas não morrem, ficam encantadas", que seria repetida 41 anos depois por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.

Sua estréia nas letras se deu em 1929, ainda como estudante. Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930, alcançando o autor seu objetivo, que era o de ganhar a recompensa nada desprezível de cem contos de réis. Chegou a confessar, depois, que nessa época escrevia friamente, sem paixão, preso a modelos alheios.

Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes. Dura pouco seu primeiro casamento, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda em 1930, forma-se em Medicina, tendo sido o orador da turma, escolhido por aclamação pelos 35 colegas.

Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, pequena cidade que pertencia ao município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos. Relaciona-se com a comunidade, até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por "seu Nequinha", que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi.

Espírita, "Seu Nequinha" parece ter sido o inspirador da figura do Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem de Grande Sertão: Veredas.

Diante de sua incapacidade de por fim às dores e aos males do mundo numa cidade que não tinha nem energia elétrica, segundo depoimento de sua filha Vilma, o autor, sensível como era, acaba por afastar-se da Medicina. Contribuiu também para isso o fato de o escritor ter que assistir o parto de sua mulher, pois o farmacêutico e o médico da cidade vizinha de Itaúna só terem chegado quando Vilma já havia nascido.

Guimarães Rosa, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, trabalha como voluntário na Força Pública. Posteriormente, efetiva-se, por concurso. Em 1933, vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – "quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação". Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco.

Um amigo do escritor, impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o segundo lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de "vocação" para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:

Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre 'après avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.

Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas Magma recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de "Viator", concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado Contos, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em Sagarana, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira.

Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar.

Embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D. Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém.

Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência."

Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas Estórias. O conto se refere à experiência de "morte parcial" vivida pelo protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela asfixia resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas).

Em dezembro de 1945 o escritor retornou ao Brasil depois de longa ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina.

Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.

Em 1948, o escritor está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração.

De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951 é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador).

Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 1951. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: Com o vaqueiro Mariano. Segundo depoimento do próprio Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava "ele perguntava mais que padre" –, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias...

Em ensaio crítico sobre Corpo de Baile, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada Campo Geral, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.

Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas Corpo de Baile, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão: Veredas, lançado em maio de 56. O terceiro livro de Guimarães Rosa, uma narrativa épica que se estende por 600 páginas, focaliza numa nova dimensão, o ambiente e a gente rude do sertão mineiro. Grande Sertão: Veredas reflete um autor de extraordinária capacidade de transmissão do seu mundo, e foi resultado de um período de dois anos de gestação e parto. A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa. Para Renard Perez, autor de um ensaio sobre Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, além da técnica e da linguagem surpreendentes, deve-se destacar o poder de criação do romancista, e sua aguda análise dos conflitos psicológicos presentes na história.

O lançamento de Grande Sertão: Veredas causa grande impacto no cenário literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas línguas e seu sucesso deve-se, sobretudo, às inovações formais. Crítica e público dividem-se entre louvores apaixonados e ataques ferozes. Torna-se um sucesso comercial, além de receber três prêmios nacionais: o Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmen Dolores Barbosa, de São Paulo; e o Paula Brito, do Rio de Janeiro. A publicação faz com que Guimarães Rosa seja considerado uma figura singular no panorama da literatura moderna, tornando-se um "caso" nacional. Ele encabeça a lista tríplice, composta ainda por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores romancistas da terceira geração modernista brasileira.

Ainda que não publicasse nada até 1962, o interesse e o respeito pela obra rosiana só aumentavam, em relação à crítica e ao público. Unanimidade, o escritor recebe, em 1961, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Ele começa a obter reconhecimento no exterior.

Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.

Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve para os pais:

Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, na copa da alta árvore pegada à casa, uma tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.

A partir de 1958, o autor começa a apresentar problemas de saúde e estes seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:

... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.

É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), religião cristã criada nos Estados Unidos em 1866 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirma a primazia do espírito sobre a matéria – "... the allness of Spirit and the nothingness of matter", a qual habilita compreender a nulidade do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte, diante da totalidade do Espírito.

Em 1962, é lançado Primeiras Estórias, livro que reúne 21 contos pequenos. Nos textos, as pesquisas formais características do autor, uma extrema delicadeza e o que a crítica considera "atordoante poesia".

Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois, no dia 16 de novembro de 1967.

Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes.

Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do país.

No meio do ano, publica seu último livro, também uma coletânea de contos, Tutaméia. Nova efervescência no meio literário, novo êxito de público. Tutaméia, obra aparentemente hermética, divide a crítica. Uns vêem o livro como "a bomba atômica da literatura brasileira"; outros consideram que em suas páginas encontra-se a "chave estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didático de sua criação".

Três dias antes da morte o autor decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que viveu."

O escritor faz seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras com a voz embargada. Parece pressentir que algo de mal lhe aconteceria. Com efeito, três dias após a posse, em 19 de novembro de 1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por socorro.

Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a publicar aos 38 anos. O autor, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo.

BIBLIOGRAFIA:

- Magma (1936), poemas. Não chegou a publicá-los.

- Sagarana (1946), contos e novelas regionalistas. Livro de estréia.

- Com o vaqueiro Mariano (1947)

- Corpo de Baile (1956), novelas. (Atualmente publicado em três partes:

- Manuelzão e Miguilim,
- No Urubuquaquá, no Pinhém e
- Noites do sertão.)

- Grande Sertão: Veredas (1956), romance.

- Primeiras estórias (1962), contos.

- Tutaméia:Terceiras estórias (1967), contos.

- Estas estórias (1969), contos. Obra póstuma.

- Ave, palavra (1970) diversos. Obra póstuma.

Colaborações em jornais e revistas:

- Colaborou no suplemento "Letras e Artes" de A Manhã (1953-54), em O Globo (1961) e na revista Pulso (1965-66), divulgando contos e poemas.

Bibliografia sobre o Autor:

Bosi, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.

Faraco, C.E. & Moura, F.M. Língua e literatura.. São Paulo: Ática, 1996. v.3.

Holzemayr, Rosenfield Kathrin. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ática, 1996. (Roteiro de Leitura).

Macedo, Tânia. Guimarãres Rosa. São Paulo: Ática, 1996. (Ponto por Ponto).

Perez, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.

Rosa, Vilma Guimarães. Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

Santo, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1996.

Sperber, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1996. (Ensaio).

Zilberman, R. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.

Acervo:

- Os arquivos do autor, abrangendo o período de 1908 a 1971, com aproximadamente 12.000 documentos, foram adquiridos pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP).

Homenagem ao Autor:

Museu Guimarães Rosa

Av. Padre João, 744
Cordisburgo - MG - Brasil
Fone: (0 XX 31) 715-1378
Agendar visitas: 3ª a dom., das 8h40min às 17h.

Versões:

1961/1967 - Publicação de "Buriti" ("Corpo de Baile", 1ª parte), "Les Nuits du Sertão" ("Corpo de Baile", 2ª parte), "Primeiras Estórias", pela Édition du Seuil; "Diadorim", pela Éditions Albin Michel, Paris - França.

Adaptações:

1969 - Publicação do livro "A João Guimarães Rosa" - (Gráficos Brunner), ensaio fotográfico de Maureen Bisilliat, com trechos de "Grande Sertão: Veredas". Curta de 09 minutos - Filmoteca da ECA / USP, direção de Roberto Santos - São Paulo (SP).

1975 - Adaptação dos contos "Corpo Fechado" (do livro "Sagarana"), direção de Lima Duarte, e "Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha" (do livro "Primeiras Estórias"), direção de Kiko Jaess, para o programa Teatro 2, da TV Cultura - São Paulo (SP)

1975 - Adaptação do conto "Sarapalha" (do livro "Sagarana"), direção de Roberto Santos, para Caso Especial, da Rede Globo - Rio de Janeiro (RJ).

1984 - Adaptação de "Noites do Sertão", direção de Carlos Alberto Prates Corrêa - Rio de Janeiro (RJ).

1985 - Adaptação de "Grande Sertão: Veredas" para minissérie da Rede Globo, direção de Walter Avancini - Rio de Janeiro (RJ).

1994 - Rio de Janeiro RJ - Adaptação para o teatro de "Grande Sertão: Veredas", direção de Regina Bertola, no Centro Cultural Banco do Brasil

1994 - Filme "A Terceira Margem do Rio", direção e roteiro de Nelson Pereira dos Santos, baseado em cinco contos do livro "Primeiras Estórias": "A Terceira Margem do Rio", "A Menina de Lá", "Os Irmãos Dagobé", "Seqüência" e "Fatalidade" - Rio de Janeiro (RJ).

Discografia:

"Rio Abaixo"
Intérprete: Paulo Freire e outros.
Disco: "Rio Abaixo - Viola Brasileira" (www.paulofreire.com.br).

"Rosas pra João"
Interprete: Renato Motha e Patrícia Lobato.
CD com 13 canções inspiradas pela obra do biografado.
(www.renatomotha.com.br)




"Um chamado João"

"João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?


Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?


Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
e precipites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?


E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?


Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar."

Carlos Drummond de Andrade - 22/11/1967 - Versiprosa



Dados extraídos de livros do e sobre o autor e páginas da Internet.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

* FAMIGERADO - O ÚLTIMO TEXTO.

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Guimarães Rosa


Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.

Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."

Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."

Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."

Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:

— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."

Se sério, se era. Transiu-se-me.

— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

— Famigerado?

— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...

— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"

— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...

— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"

— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...

— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...

— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.


Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 13, cuja compra recomendamos.

* VOO DO PÁSSARO DOURADO

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Trecho do livro Voo do Pássaro Dourado, diálogo entre Mathieu e Suzana, capítulo:
[...]

Mathieu, depois de espetar uma azeitona:
- Quem mais gosta ler, Suzana?
- Hummmm..., são tantos! Posso afirmar que Fernando Pessoa me faz muito bem.
- Magnífico.
- Versos que incluem reflexões filosóficas e sociais.
- Sim.
- Fernando conversa com a poesia de maneira extraordinário. Interroga o verso como se fosse matéria viva, questiona o verbo, fala dos adjetivos e dos substantivos como se quisesse dar lentes para a gente enxergar as coisas de um jeito menos rude, mais suave e doce.
- Parabéns. A obra dele é completíssima. Um dia li que seus versos constituiem-se numa solitária multidão de uma só pessoa.
- Verdade. Poesia é o silêncio que, quase sempre, preciso para respirar. Leio o poeta português como quem busca um ombro que me facilita a entender o cenário transitório da existência.
- Parabéns. Em prosa?
- Guimarães Rosa.
- Outro poeta, acima de tudo. Ambos tem recursos intelectuais de sobra. Dois clássicos que garantem que um
 um dos segredos da grande literatura é tornar o ser humano mais adulto e melhor.

- Com certeza. Rosa, Math, eu leio com atenção especial. Sou de Cordisburgo.
O rapaz abre mais o sorriso. Cheio de certeza:
- Boas escolhas, menina. Guimarães Rosa e Fernando, que incluem reflexões filosóficas e sociais em seus textos, são autores iluminados que a gente lê duas, três páginas e tem no que pensar durante um mês ou mais. Para eles a literatura é uma coisa viva.. Concorda?
-Totalmente. Sabe que ‘Grande Sertão: Veredas’, com todo o seu malabarismo verbal, foi escrito em Paris de forma, mineiramente, silenciosa.
- Um truque?
- Talvez.
- Exigiu deste ambientalista da literatura horas e horas de meditação criativa, sentado numa poltrona à luz de um abajur – explica a mulher.
- Ave, Rosa!... Até hoje não sei porque o poeta Ferreira Gullar não agradou nem um pouco da obra. Num través de rusgas, achou uma história de cangaço contada para lingüistas.
- Tolices. Muitos escrevem sobre Guimarães Rosa, poucos leram suas obras – torna a mulher condoída.
- Pior que é.
- Digo sempre aos meus alunos que Guimarães Rosa deve ser lido sem pressa, curtindo palavra por palavra. Que se iniciem com o conto ‘A Hora e a Vez de Augusto Matraga’, coisa de cinema! Uma verdadeira partitura poética, um close reading na obra do senhor do neologismo.
- Traduz.
- Expressão que pode ser traduzida como leitura atenta ou leitura densa.
- Esnobe. Precisa inglesar?
- Vez ou outra, gosto de um sotaque inglês na língua portuguesa. Desculpe-me. O professor Moacyr Laterza, em suas aulas de filosofia, chamava de ‘leitura estática’, em oposição à moda da leitura dinâmica.
- No momento, Suzana, o que está lendo?
- ‘Primo Basílio’.
- Eça!... – surpreende-se Mathieu.
- Sim. Não foi o Eça que disse que se lê para viver, não foi?
- Não sei, foi?
- Acho que sim. Também gosto da ficção portuguesa, como da inglesa, da russa e da francesa  – suspira a mulher.
Mathieu, com entusiasmo, afirma:
- Não faço aquele tipo que endeusa escritores como se eles fossem algo muito superior. Digo que Fernando Pessoa, Lorca, Oscar Wilde, Shakespeare, Voltaire, Balzac, Flaubert, Dostoievsky, Tolstói, Machado de Assis, mortos há anos, não perderam o poder de entreter, muito menos o de desvendar o grande espetáculo humano através de suas grandes obras,
provando que histórias bem contadas, com caráter universal, tendem a funcionar em qualquer parte do mundo.
         - Sem sombra de dúvida.
- Livros que permitem entrar na intimidade de seus autores e na comunidade em que viveram. Na mesma visita, podemos compeender a visão política do universo de todos estes grandes artistas, como se fossem eles pilotos de uma nave que nos arrastam para muito longe.
- De fato.
- Continuam na lista dos mais lidos.
- Claro. Livro bom a gente lê não apenas pelo deleite, mas, também, para ajudar no conhecimento de si próprio. É o peso da palavra, ‘né?
Pausa. Mathieu acrescenta:
- Segundo alguns críticos, Lev Tolstói  e Willian Shakespeare são melhores do que quase tudo o que a humanidade produziu em termos de literatura. Cada um, a seu modo, buscou força vital nas atividades intelectuais para criar obras que auxiliam o ser humano a entender sua existência. Provados pelo tempo eles continuam atualíssimos – assegura Mathieu.
- Verdade?
- Ninguém mais do que esta dupla de autores compreendia o encantamento do público pela vida das pessoas mais privilegiadas.
- Evidente.
- Em comum, o domínio de uma técnica narrativa cativante, que consegue superar limites entre gêneros e temas numa carpintaria fenomenal do romance que provoca o leitor à elaboração mental de discursos e imagens.
Suzana rebate:
- Não sei se concordo. Math, voltando à literatura brasileira, me fala um pouco de Joaquim Maria Machado de Assis.
- Escritor singular que nasceu na pobreza em 1839, sem dúvida alguma, é o ponto mais alto e equilibrado da prosa brasileira. Dotado de habilidades de autor eclético e com admirável cabedal narrativo em sua arte plena de vida, ele ainda ocupa o lugar mais alto do pódio. Sua obra continua na lista das mais lidas. Incrível como é incrível Guimarães Rosa!
- Hein?
- A dialética machadiana não olvidou a lição dos clássicos na pretensão científica do ‘Alienista’ e loucura de ouros personagens. Em cada brasileiro mora um ‘dandi’ de Machado de Assis, o Bentinho..., e um jagunço de Rosa, o Riobaldo. Criaturas que ensinam cada um de nós a sobreviver. Dois escritores, em épocas diferentes, que deram de presente ao mundo uma nova forma de fazer literatura brasileira.
Pausa. Suzana:
- Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

[...] 

* Para ler o capítulo todo, clique:

http://milnovecentos68.blogspot.com/2011/01/32xxxii-o-sabor-do-texto-em-veredas.html

* Extraído do livro O VOO DO PÁSSARO DOURADO, Welington Almeida Pinto. FBN©/2011

32º/XXXII – O SABOR DO TEXTO EM VEREDAS UNIVERSAIS

* HOJE TEM FESTANÇA EM CORDISBURGO? TEM, SIM SENHOR

.
                                                Welington Almeida Pinto




Dia desses, exatamente na morna manhã do dia 27 de junho, o camarada Ladu* me liga, todo empolgado:
- Moço, você não vem para as comemorações? Uma festança!...
- Claro. Claro. Saio depois do almoço.
- Não senhor, almoça comigo.
- Qual o cardápio? – perguntei em tom de brincadeira.
- O prato preferido do Joãzito: frango ao molho pardo, cozido com ora-pro-nóbis em panela de ferro, soltando fumaça de alecrim.
- Meu Deus do céu!....
- E preparado sob a batuta de dona Antonieta.
-Dona Antonieta!... Dona Antonieta!...
- A própria, lá de Araçaí, Antonieta da Silva que, mesmo com 87 anos, apareceu para a missa em tributo ao escritor. Está aqui comigo. Não demore muito, combinado?
- Ok
- Cordisburgo começou a sexta-feira com missa. Daqui a pouco, canjica de amendoim, orquestra e dança na praça.
- Muito bom.
- A cidade em peso, ou pelo menos parte da cidade que interessa, já pode ser vista comemorando os 100 anos de seu filho literato. Festa de estrondo, coisa para dar o que falar – discursa o político.
- Vilma Guimarães Rosa vai mesmo tomar posse na ACL?
- Com tudo que a filha do nosso escritor maior tem direito.
- Então, me deseja boa viagem.
- Boa viagem. Estamos esperando.
- Não tardo a chegar. Obrigado.
Feliz da vida despedi do amigo, dentista e prefeito, em vários mandatos, de Cordisburgo e eterno anfitrião da nossa cidade do coração. De repente, uma energia intensa invade meu peito ao imaginar a satisfação de rever um lugar donde nunca deveria largado..., ali nas proximidades da vereda do ‘Mumbuca’. Vistosa aglomeração de buritis com um filete de água no meio, formando um lago para matar a sede das boiadas e dos vaqueiros no grande sertão, onde, durante anos curti meu ‘Sítio dos Coqueiros’, um cantinho de mato fervilhado de plantas desta família.
Boas lembranças! Com sábia razão dizia Rosa que é preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e mais amar, depois de ter amado.

* Geraldo José Martins, alcunha Ladu, foi prefeito da cidade de Cordisburgo por três mandatos.

*  FBN© 2009 * HOJE TEM FESTANÇA EM CORDISBURGO? TEM, SIM SENHOR
- Autor: Welington Almeida Pinto - Categoria: crônica, publicada em 01.12.2007 – Jornal Livre/Artigonal-SP – www.cronicasgeraes.blogspot.com



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Guimarães Rosa 100 anos

* MOMENOS POÉTICOS DE ROSA.

.
Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?

* Luar

De brejo em brejo,
os sapos avisam:
-A lua surgiu!...

No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
Rola,desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da via-láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
tla cairá...



*O canoeiro

que vem no remo, desprevenido,
ouve o gemido e fica a tremer.
É o caboclo d’água,
todo peludo, todo oleoso,
que vem subindo lá das profundas,
e a mão enorme,preta e palmada,
de garras longas,
pega o rebordo da canoinha
quase a virar.

E o canoeiro, de facão pronto,
fica parado, rezando baixo,
sempre a tremer
Crescendo d’água ,lá vem a máscara,
negra e medonha,
de um gorila de olhar humano,
o Caboclo d’água
ameaçador.

E o canoeiro já não tem medo,
porque o Caboclo o olhou de frente,
todo molhado,
com olhos tristonhos,rosto choroso,
quase falando,
quase perguntando
pela ingrata Iara,
que, já faz tempo, se foi embora,
que há tantos anos o abandonou...


* Riqueza

Veio ao meu quarto um besouro
de asas verdes e ouro,
e fez do meu quarto uma joalharia...
Distância sentimental
Mesmo ao sonhar contigo,
só consigo que me ames noutro sonho
dentro do meu sonho primitivo...
Pudor estóico
Acuado entre brasas
um escorpião volve o dardo
e faz o hara-kiri...
Encorajmento
Meu corre a ti com velas enfunadas...
Podes dar-lhe um porto, sem nenhum receio:
ele não traz âncora...
Medo da felicidade
Estremecemos juntos...
Que Potêcia má será a soberana
desse vento frio que passou?...
Mal-entendido
Na boda de um camarão com uma lagosta,
levantaram um brinde ao transatlântico
que passou por cima para os cumprimentar...
Definição
O cigarro de fumaça impalpável e brasa colorida,
que se afunda a si mesmo num cinzeiro,
será um poeta?...
Epigrama
Ó lua cheia,
ocular de um longo telescópio branco
que devassa o pais dos amores platônicos...
Madrigal gravado em laca
Quando a borboleta coroou a flor amarela
os lírios , em ângulo reto com seus caules,
fizeram uma profunda saudação...
Para os almanaques
No meu relógio, de uma para outra hora,
quando o ponteiro menor sai a levar lembranças ,
passa-lhe a frente o grande, transportando intrigas...
Falta de armas
Dois caracóis chocaram, de leve, as suas casas,
e mexeram tentáculos , um dia inteiro,
pedindo-se mil desculpas...
Oração
O louva-deus, ereto, num caule de junquilho,
reza , de mãos postas, com punhais cruzados,
como um bandido calabrês...
Justificação
Ponham o Amazonas ao pé do Himalaia ,
e ali nascerá, depressa,
uma raça de homens pequeninos...
Paisagem
A cascavel chocalha na moita, anunciando
grátis,
um destino certo...

* A Iara

Bem abaixo das colinas de ondas verdes,
onde o sol se refrata em agulhas frias,
descem todas as sereias dos mares e dos rios,
irreais e lentas , como espectros de vidro,
para os palácios de madrépora de Anfitrite,
em vale côncavo, transparente e verde,
num recanto abissal, como uma taça cheia,
entre bosques e sargaços, espumosos,
e rígidos jardins geométricos de coral...

Por entre os delfins , sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas , soltas, como grandes algas,
carregando os jovens afogados:
Ondinas das praias , flexosas,
Nixes da água furtacor do Elba ,
Havefrus do Sund e Russalkas do Don ...
Loreley traz no esmalte doce dos olhos
duas gotas do Reno...
E danaides Laboriosas se desviam dos cardumes
De Nereidas,
que imergem, ondulando as caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de lamé...

Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque Iara tem sangue,
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da terra vermelha,
carne de peixe da água gorda do rio...

Iara de olhos verdes de muiraquitã,
cintura pra cima de cunhantã
cintura pra baixo de tucunaré...
que veio, dormindo , Purus abaixo,
filha do filho do rei dos peixes
como uma índia branca cuchinauá...

Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana , tapuia , morena,
Tão orgulhosa,
Que não quer ser desprezada pelas outras...

E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas lentas
em nhheengatu :
-- Iquê , ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua quitó...

Nem mais se esforça em seduzir
o canoeiro mura ou o seringueiro,
meio vestida com gaze das águas ,
na renda trançada dos igarapés...
E eu tenho de chorar:
-- Enfeitiça-me ó Iara,
que eu vim aqui pra me deixar vencer...

Mas custa-me encontrá-la,
e só à noite sem bordas dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias desabrocham soltas,
posso beijá-la ,
nua ,
dormida,
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória-régia ,
tomando o banho longo
de perfume e luar...


*Consciência Cósmica

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força de dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir , se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

*O Caboclo d’Água

No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas se ensaboam
antes de saltar.
E lá embaixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço
da quarta volta do rio,
largo, tranqüilo, tão chato e brilhante,
deitado a meio bote
como uma boipeva branca.

Na água parada,
entre as moitas de sarãs e canaranas,
o puraquê tem pensamentos
de dois mil volts.
À sombra dos mangues,
que despetalam placas vermelhas,
dois botos zarpam, resfolengando,
com quatro jorros,
a todo vapor.
E os jacarés cumpridos, de olhos esbugalhados,
soltam latidos , e vão fugindo,
estabanados, às rabanadas, espadanando,
porque do fundo
do grande remanso, onde ninguém acha o fundo,
vem um rugido , vem um gemido,
tão rouco e feio, que as ariranhas
pegam no choro, como meninos.



* Reportagem

O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas...


* MADRIGAL

No tronco do jequitibá,
que estavas abraçando,
colando-lhe o corpo, do rostinho aos pés,
vejo os arranhões fundo,
onde o canguçu, quase de pé,
afia as garras,
e, mais embaixo, a casca estraçalhada,
onde os caititus vêm acerar os dentes...


* ALARANJADO

No campo seco, a crepitar em brasas,
dançar as últimas chamas da queimada,
tão quente que o sol pende no ocaso,
bicado,
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tengerina temporã madura...


* IMENSIDÃO
Cheiro salgado
de um cavalo suado.
Quem galopa no mar?...

*ROMANCE-I

No cinzeiro cheio
de cigarros fumados,
os restos de uma carta...


* ROMANCE II

Bem na frente
de um retrato empoeirado,
uma aliança esquecida...


* EGOÍSMO

Se fosse só eu
a chorar de amor,
sorriria...


* MUNDO PEQUENO

O albatroz prepara
breve passeio
de Pólo a Pólo...


* INFINITO

Ó múmia longa,
ante os teus séculos,
eu durmo ainda...


* EVOCAÇÃO

Lagosta púrpura:
uma galera a remos
conduzindo um César...


* TURISMO SENTIMENTAL

Viajei toda a Ásia
ao alisar o dorso
da minha gata angorá...


* TURBULÊNCIA

O vento experimenta
o que irá fazer
com sua liberdade...


* GARGALHADA

Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...


* CONSCIÊNCIA CÓSMICA

Já não é preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem de deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir, se me restasse o riso,
das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo de meu corpo...


FONTE: INTERNET
Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/index.htm

* FOLHA EXPLICA GUIMARÃES ROSA

.
Redação

"Guimarães Rosa é único na literatura brasileira: foi em sua pena que nossa língua literária alcançou seu mais alto patamar. Nunca antes, nem depois, a língua foi desenvolvida assim em todas as suas virtualidades." - Walnice Nogueira Galvão, professora de literatura da USP, autora de "Folha Explica - Guimarães Rosa"
Guimarães Rosa (1908-1967) é, por consenso, o maior escritor brasileiro de ficção da segunda metade do século 20. Um panorama da vida e da obra do autor é desvendado em "Guimarães Rosa", volume da coleção "Folha Explica", da Publifolha. O capítulo de introdução do livro pode ser lido abaixo.
Na obra, assinada por Walnice Nogueira Galvão, professora livre-docente de literatura na USP, o leitor descobre e entende como --e por que-- Guimarães Rosa transportou a nossa língua literária para um plano de invenção nunca antes alcançado.
A autora se detém especialmente na análise de "Grande Sertão - Veredas", obra definitiva de Rosa, um livro singular que revela os fundamentos que definem o povo brasileiro e, ao fazê-lo, ensina a pensar o Brasil por outro viés.
"[O livro] mostra como num país imenso, de território quase infinito, o exercício privado e organizado da violência a serviço dos poderosos sempre constituiu a regra, e não a exceção. Aí radica um dos fundamentos de uma sociedade sem par em sua iniqüidade", escreve a autora no capítulo dedicado a "Grande Sertão - Veredas".
"Guimarães Rosa" traz ainda análise do restante da obra do autor, desde "Sagarana" (1946) até seus livros póstumos "Estas Estórias" (1969) e "Ave, Palavra" (1970), uma breve biografia de Rosa, além de uma bibliografia que reúne os seus livros e os principais livros de outros autores que se dedicaram a estudar sua obra.
A série "Folha Explica" ambiciona oferecer ao leitor condições para que fique bem informado sobre os temas tratados e possa refletir sobre eles a partir de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país. *Leia abaixo a introdução de "Guimarães Rosa"
*
Introdução
Quando Guimarães Rosa publicou seu primeiro livro, Sagarana, em 1946, duas vertentes assinalavam o panorama da ficção brasileira: o regionalismo e a reação espiritualista.
Sua obra vai representar uma síntese feliz das duas vertentes. Como os regionalistas, volta-se para os interiores do país, pondo em cena personagens plebéias e 'típicas', a exemplo dos jagunços sertanejos. Leva a sério a função da literatura como documento, ao ponto de reproduzir a linguagem característica daquelas paragens. Porém, como os autores da reação espiritualista, descortinando largo sopro metafísico, costeando o sobrenatural, em demanda da transcendência.
No que superou a ambas, distanciando-se, foi no apuro formal, no caráter experimentalista da linguagem, na erudição poliglótica, no trato com a literatura universal de seu tempo, de que nenhuma das vertentes dispunha, ou a que não atribuíam importância. E no fato de escrever prosa como quem escreve poesia --ou seja, palavra por palavra, ou até fonema por fonema.
Nesse sentido, Guimarães Rosa é único na literatura brasileira: foi em sua pena que nossa língua literária alcançou seu mais alto patamar. Nunca antes, nem depois, a língua foi desenvolvida assim em todas as suas virtualidades. A tal ponto que, na formulação de um de seus primeiros e melhores críticos, Cavalcanti Proença,1 ele chega a se confundir com a língua, colocando-se em seu ponto inaugural e, a exemplo dela, criando incessantemente.
Assim, por exemplo, toma a liberdade de trocar um sufixo por outro (prefere "abominoso" a abominável). Ou deriva um adjetivo, até então inexistente, de um substantivo; ou o contrário. Ou ainda inventa um verbo, a partir da enumeração das vogais ("o vento aeiouava"). Ou cunha um nome próprio, juntando o pronome de primeira pessoa em várias línguas --que, pronunciados à brasileira, se tornam irreconhecíveis-- para batizar a personagem Moimeichego (moi, me, ich, ego). E assim por diante. O escritor está reproduzindo os processos de criação da própria língua.
Dedicou-se incansavelmente a atacar o lugar-comum, que jamais utilizava, a menos que fosse para criar um análogo, antes escrevendo 'antenasal de mim a palmo' que 'a um palmo diante do nariz'. Esse propósito de inovação lingüística manifesta-se a todo momento em sua obra; e ele também se pronunciou a respeito em entrevistas e declarações.
Outra razão pela qual a leitura de Guimarães Rosa é uma experiência imperativa reside em sua capacidade de fabulação. Raramente houve na literatura brasileira um autor tão prolífico em diferentes enredos, com suma capacidade de inventar tramas e personagens.
Dentre estas, ao se concentrar nas que elegeu, o escritor como que dignifica o sertanejo pobre, mostrando como o mais papudo dos catrumanos dos cafundós pode aspirar à transcendência e se entregar a especulações metafísicas, sem precisar sequer saber ler.
Este livro tem por objetivo apresentar a obra do escritor, examinando-a de diferentes perspectivas. Um primeiro capítulo cuida de determinar o lugar que ocupa na literatura brasileira, mostrando como sua originalidade o torna incomparável, embora tenha precursores.
O Capítulo 2 se concentra em esmiuçar o mais importante de seus livros e único romance, Grande Sertão: Veredas (1956), assumindo que todos os grandes achados de sua ficção se encontram ali sintetizados. O terceiro capítulo é dedicado ao restante da obra de Guimarães Rosa, analisando desde Sagarana (1946), passando por Corpo de Baile (1954), Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia - Terceiras Estórias (1967), até seus dois livros póstumos, Estas Estórias (1969) e Ave, Palavra (1970). O capítulo seguinte fornece os traços biográficos do escritor. E a Conclusão faz um balanço de seu papel em nossa cultura.
Completa este livro uma bibliografia de e sobre o autor, em que se procurou selecionar o que é, de fato, tanto indispensável quanto ilustrativo do amplo espectro teórico e crítico que essa obra suscitou.
1 M. Cavalcanti Proença, Trilhas no Grande Sertão. Rio de Janeiro: MEC,1958.
*
“Guimarães Rosa"
Autora: Walnice Nogueira Galvão. Editora: Publifolha. Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha
FONTE: FOLHA ONLINE - 26/06/2008 - 23h03
Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml

* CORDISBURGO COMEMORA CENTENÁRIO DE GUIMARÃES ROSA

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Ivan Finotti
da Folha de São Paulo, em Cordisburgo (Minas Gerais).


-Vilminha, vou te dar uma dica de escrita. Sabe o que é mais importante na hora de escrever um conto? É o começo.
-Por quê, papai?
-Para a pessoa se interessar e ler inteirinho. Agora, me descreva o que você está vendo.
-Uma moça alegre e bondosa, papai.
-Nada disso, Vilminha. É uma moça de vestido amarelo.
Se ela é alegre e bondosa, você vai falar depois. Na primeira vez que você descreve alguém num conto, diga só o que você vê. Entendeu, Vilminha?
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um escritor, como a história de um burrinho pedrês, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de João Guimarães Rosa foi toda comemorada em algumas horas -nove da manhã às nove da noite- no dia 27 de junho de 2008, que o autor nasceu em dia igual de 1908, na pequena Cordisburgo, perto da gruta do Maquiné, no centro de Minas Gerais.
E na comemoração de seus cem anos serão lançados 15 livros, sendo que dois já o foram na sexta passada, em Cordisburgo, nome meio latim, meio alemão, que significa cidade do coração, a uma hora de distância de Belo Horizonte, mais ou menos, a depender dos caminhões.
Teve missa de manhã, abertura de exposição no museu do escritor, almoço com torresmo, orquestra sinfônica na igreja, lançamento de selo dos Correios e show ao vivo, sem falar na canjica com amendoim servida na praça. Foi lançado um livro biográfico, escrito por sua filha, a Vilminha, que lhe seguiu os passos no mundo das letras depois de tanto ouvir dicas; e outro, para as crianças, sobre um dos assuntos preferidos do escritor, os bichos. Nesse infantil, Rosa comete descrições exatas do mundo animal. Como essa, que define o macaco e, de quebra, o homem também: "O macaco: homem desregulado. O homem: vice-versa; ou idem."
O burrinho pedrês, primeiro personagem de "Sagarana" (1946), tão querido dos leitores, não entrou no livrinho, então aí vai para que ninguém fique triste: animal miúdo, idoso, beiço inferior caído, pêlo ralo e encardido; não entra em lugar de onde não pode sair.
E quem conheceu de perto o burrinho pedrês foi o Juca Bananeira, personagem do conto e figura andante de Cordisburgo. Bananeira era empregado do seu Florduardo, o pai de João Guimarães Rosa, e foi pajem do menino. Contava-lhe histórias, que João mais tarde escreveu.
Além de cuidar do Joãozito, Juca Bananeira foi boiadeiro, carroceiro, açougueiro e ainda por cima delegado. Isso tudo sem saber ler nem escrever.
Pois Bananeira morreu com 104 anos em 1998 -um ano depois do Manuelzão, outro boiadeiro que virou personagem do Rosa. E a neta do Bananeira, Tania Cristina Trambini, 42, está comemorando o aniversário do escritor em Cordisburgo.
E a filha dela, bisneta do Juca Bananeira, que não sabia ler nem escrever, já está na faculdade de enfermagem; é a evolução do sertão.
Boiada
A dona Antonieta da Silva tem 87 anos e veio para a missa em homenagem ao escritor. Ela conheceu o homem em pessoa, em 1952, quando Rosa acompanhou oito vaqueiros trazendo uma boiada desde a fazenda da Sirga, na beira do São Francisco, até a fazenda São Francisco, em Araçaí, tudo sendo em Minas Gerais.



Foram 11 dias e 240 km, e essa viagem é importante demais porque foi ela que inspirou um bocado de coisas, como "Grande Sertão: Veredas" e as nove novelas de "Corpo de Baile". A boiada vinha de vereda em vereda, que no sertão vereda é como oásis no deserto, uma junção de vegetação com água no meio. E a vegetação é principalmente um aglomerado de palmeiras chamadas buritis, com folhas tão verdes como os olhos de Diadorim -o escritor escreveu essa comparação depois, para dar uma idéia da importância dessa viagem para a literatura brasileira-, e que brilham sob o sol.
Na ocasião, a comitiva parou na fazenda do marido da Antonieta e pediu pouso. "Ele disse assim para mim: "O que vocês comerem eu como, não se preocupem comigo". E pro meu marido ele disse: "Muito linda a sua esposa'", relembra satisfeita a senhorinha, que já esqueceu o que serviu de comer ao Rosa.
Em matéria de relembrar, Vilminha, ou Vilma, que não é mais o pai quem lhe fala, lançou seu livro "Relembramentos" e foi homenageada pela Academia Cordisburguense de Letras, que a empossou presidenta. Vestida com camisa de onça e sapato de onça, a filha do escritor ganhou até apelido da gurizada de Cordisburgo: "Já acabou a posse da onça?". Não, não acabou. Parecia que não acabava nunca a cerimônia, que Cordisburgo pode ter só 9.000 filhos, mas tem 30 ilustres escritores, e todos tinham o que dizer na posse da onça.
O curioso é que Joãozito, quando adolescente, freqüentava a fazenda do primo perto do ribeirão do Onça, "do" Onça porque é do (município) do Onça. E quem sabe desses detalhes todos da vida do Rosa é o Brasinha, José Osvaldo dos Santos, 52, que tem uma loja de roupas em Cordisburgo, mas cujo gosto mesmo é estudar o escritor.
"Eu procuro o real dentro da ficção", conta o Brasinha, que seguiu os passos de Manuelzão, Juca Bananeira, Zito, Santana, Gregório e do burrinho pedrês, aquele mesmo que não entra em lugar de onde não pode sair.
Brasinha conhece uma vereda a 15 km de Cordisburgo. "Divera, Brasinha?" "Divera! Vamos lá conhecer, que você tá num cangari. Assim é peta.
Mesmo que você não queira, o sertão é assim". É preciso tomar cuidado nos sertões, para não pegar sinais de bicheira, a exemplo do burrinho pedrês, que é esperto, prefere evitar danos inúteis e nunca entra em lugar de onde não pode sair. É que lá "fazem vôo, zumbidoras e mui comadres, a mosca do berne, a lucília verde, a varejeira rajada, e mais aquela que usa barriga azul".
-Vilminha, tenho mais uma dica para você. Sabe qual é a outra coisa mais importante num conto?
-O quê, papai?
-É o fim. Para que a pessoa tenha vontade ler o próximo.


* O jornalista Ivan Finotti e o repórter-fotográfico Fernando Donasci viajaram a convite da Editora Nova Fronteira.

* FONTE: INTERNET

** FOTOS: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u417939.shtml

*** Matéria de capa do caderno ILUSTRADA, do jornal Folha de São Paulo do dia 01/07/2008 – Brasil/Brazil

* NO PANTANAL COM J. G. ROSA.

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Manuel de Barros


Andamos para ver a roça de
mandioca. Tatu estraga muito
as roças por aqui. Há muito
tatu, Manoel? Eles fazem
buraco por baixo do pau-apique,
varam pra dentro da
roça, revolvem tudo e comem
as raízes. Remédio contra
tatu é formicida. Fura-se um
ovo, bota formicida dentro e
esquece ele largado no solo
da roça. Rolinha passa por
cima e nem liga. Mas o tatu
espuga, vem e bebe o ovo.
Sente a fisgada da morte
num átimo e sai de cabeça
baixa, de trote para o cerrado,
pensando na morte... Homem
é igual, quando descobre sua
precariedade, abaixa a cabeça.
Já sabe que carrega sua
morte dentro, seu formicida.

Essa é nossa condição – Rosa
me disse. Falou: eu escondo
de mim a morte, Manoel.
Disfarço ela. Lembra o livro do nosso Alvaro Moreira? A vida é de
cabeça baixa? Deveria de não ser – ele disse. Chegamos perto
da metafísica. E voltamos. Havia araras. Havia o caramujo perto
de uma árvore. Ele disse: Habemos lesma, Manoel. Eu disse:
caramujo é que ajuda árvore crescer. Ele riu. Relvas cresciam nas
palavras e na terra. Rosa escutava as coisas. Escutava o luar
comendo árvores. E, como é o homem aqui, Manoel?

Eu fui falando nervoso. Ele queria me especular. O homem se completa
com os bichos – eu disse –, com os seus marandovás e com as suas
águas. Esse ermo cria motucas. Por aqui não existem ruínas de civilizações
para o homem passear dentro delas. Só bichos e águas e árvores
para a gente ver. Não têm coisas de argamassa, ferragens destripadas
do deserto, essas coisas que aparecem nos relentos da Europa. Aqui é
brejo, boi e cerrado. E anta que assobia sem barba e sem banheiro. Rosa
me olhou de esguelha. E árvore, Manoel, o nome de algumas, você me
dará? Aqui o que sabemos é por instinto e por apalpos. Não é como o
Senhor faz com as palavras. Ele me olhou mais ao fundo. – Como sabe
que eu mexo com palavras? Você é daqui, Manoel? Sou pantaneiro de
chapa e cruz. Sou puro de corixo e de vazantes. Ele quis me descobrir.
Me empedrei. Quer saber qual o nome que tal árvore tem aqui. Quer saber
o nome daquele passarinho que pula no brejo, cor de café, e como é
que ele canta. A gente só sabe essas coisas por eflúvios, por ruídos, pelo
faro. Mas sempre se pode errar pelo faro. Pensa que vai dar na guabiroba
e dá no guaviral. A gente não sabe o cultural desses entes de folha e de
asas. Só se sabe o natural. O que se vê. A cor do ovo que botam, o duro
do vôo, a casca, a resina, os excrementos. Aqui toda árvore a gente chama
de pé-de-pau. Menos aquelas de fazer cerca, madeira de lei, vinhático,
aroeira, piqui, piúva. E mais aquelas de onde se tira medicina: paratudo,
nó de cachorro, mangava brava. E mais as qualidades de mel que
dá no pé-de-pau: jati, manduri, borá, d’oropa, sanharão, mandaguari,
arichiguana. E passarinho, Manoel? Rosa me especulava por trás do
couro, como quem sonda urubu. Queria saber de um tudo. De avoador,
eu disse, só urubu, garça, cracará – esses pássaros grandes. O resto quase
é inominado. Passarinho pequeno é passarinho à-toa. Rosa sabia essas
coisas, só estava me sondando. Falei para ele. Isso é como a gente não
saber o nome de todas as pessoas que vão atravessando o Viaduto do
Chá. Rosa estrelou sua risada. É isso mesmo, Manoel! É tanta gente que
não se sabe o nome. E passarinho é a gente daqui. E o tordo, qual é a letra do canto que ele canta? A música eu sei de cor, mas a letra eu não
sei – ele disse. A letra é assim: Primo com prima não faz mal, finca finca...
Oi tordo erótico, Manoel. Os lá de Minas têm mais compostura, ele
disse. E sapo, lá tem demais?, eu perguntei. Tem quase menos que por
aqui, ele disse. Mas os poucos que tem lá cantam mais bonito. Queria me
desafiar. Eu disse: Mas, Rosa, pode reparar uma coisa: no canto do nosso
sapo tem uma curva luminosa... Rosa gostou. Nossa conversa era desse
feitio. Ele inventava coisas de Cordisburgo. Eu inventava coisas do
Pantanal. Rosa andou por aqui em junho de 1953. Já havia publicado
Sagarana e estava consagrado. Não tinha fim a sua curiosidade. Dava
ares de um rei, às vezes. Mas o rosto merecia anjo. Eu tinha informações
de seu gosto por línguas, idiomas. Traçava até línguas arrevezadas: checo,
aramaico, sei lá. Queria saber guarani. Foi no caderno, virou, virou,
me perguntou. Manoel, que quer dizer não tem nhamonguetá nem bugerê.
Tentei traduzir. Quer dizer: não tem conversa nem vira de lado. Isso é
guaranês, falei de orelhada. Mas Rosa quer saber a origem, quer saber a
explicação de tudo. Rosa se aplica nas palavras com o fundo indagar.

Fica imaginando. Recorre a outras línguas de raízes tupi. Faz desenhos
de letras no caderno. Excogita. Disse pra ele que o Patanal quase teve um
dialeto. Muitos anos os moradores ficaram isolados. Isto se fez uma ilha
lingüística. Palavras sofriam erosões morfológicas ou semânticas. Outras
eram criadas. E algumas sumiam por serem de cidade. Por exemplo,
Manoel, uma palavra que sofreu erosão? Aqui se mata uma capivara
para comer e a primeira coisa que se faz é tirar da capivara a misca. A
misca é uma catinga, um cheiro forte localizado no lombo de capivara.
Muitos anos vivi com essa palavra, e agora sei. Rosa disse: vem de almíscar,
né? Sim, vem de almíscar. Almíscar sofreu uma erosão nas duas
margens e virou misca. De palavra o Rosa sabe tudo. E me explicou:
almíscar é uma substância odorífera... etc. E por que não se completou o
dialeto, Manoel? A ilha não é mais ilha. Agora caminhão atravessa, fordeco,
avião. Mascate chega de carro, e o rádio desemboca músicas e falas
estranhas. Pode me dizer alguma expressão que ficou do dialeto, alguma
invenção? O verbo clarear, por exemplo. Aqui ele tomou um outro significado.

Assim: clarear de uma pessoa, é fugir dela. A expressão vem de
quando, nas corridas de cavalo, aquele que vai na frente, avança mais de
um corpo sobre o outro. Se avança mais de um corpo, o cavalo faz luz
dele para o outro. Quer dizer: clareia do outro. Para dizer que se deixou
a namorada se fala: clareei dela. Rosa acha que se obedeceram as leis da
formação de um dialeto. E o folclore, Manoel? Pantanal tem pouco folclore,
pois se trata de pouso relativamente novo. Há quem misture folclore
com bichos, coisas exóticas. Aqui não há nada exótico. Turista não
precisa vir atrás de exótico. O que tem aqui tem em toda parte. Mas de
folclore, que é outro departamento, tenho um amigo, Neto Botelho, que
sabe das coisas, que informa sobre nosso monumento nessa área que é o
cavalo. Cavalo é nosso enfeite, nosso instrumento de trabalho, nosso
meio de transporte, nosso amigo, nossa arte. Com ele se ganha o pão,
com ele se vai namorar. Ofereço ao Rosa um poema do Neto Botelho
sobre um cavalo que teve:

“Tive um cavalo ruano
De nome Balança-os-Cachos
De cheirar e mandar guardar
Cavalo de confiança
Pegava em quarenta metros
Galardão de cola e ancas
Um ente desanormal
Coisa de prateleira
Ventena como o fedor
Não foi de ensebar serviços
Nem teve queda pra cangas
Pastor de primeira instância
Cavalo de putear delegado
Livre como as vertentes
Podia até lavar louças
Leve de patas que era
Só faltava ir no cinema.”

Rosa tomou nota. Gravou na caderneta. Anos depois fui ver na Casa de
Ruy Barbosa, onde se fazia exposição dos cadernos de Rosa, mas lá não
encontrei o poema. Aliás vi poucas notas da viagem de Rosa ao Pantanal.

Quis saber, ele, ainda, dos meus receios sobre as confusões com o exótico.
Falei, falei demais, espichei. Dei a entender que se estava olhando o
Pantanal só como uma coisa exótica. Um superficial para só se ver e
bater chapa. Mesmo os que o cantavam em prosa e verso ficavam enumerando
bichos, carandá, tuiuius, jacarés, sariemas; e que essa enumeração
não transmite a essência do Pantanal, porém só a sua aparência.

Havia o perigo de se afundar no puro natural, etc. Precisamos de um
escritor como você, Rosa, para freiar com sua estética, com a sua linguagem
calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o nosso
verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a
natureza. Humanizá-la. Rosa fez tudo isso alguns anos depois, dando a
público o seu Com o vaqueiro Mariano, um livro intenso de poesia e
transfigurações. Dele recebi um exemplar dedicado. – Olha aí, Manoel,
sem folclore nem exotismos – como você queria. Só vi Guimarães Rosa
outras vezes na Divisão de Fronteiras de Itamaraty, e em sua posse na

Academia, três dias antes de morrer. A morte que levava no corpo. E que
nem pôde dessa vez esconder-se dela... Esse gênio eu conheci e tenho
orgulho disso.

Extrato de “Pedras aprendem silêncio nele”, entrevista concedida pelo poeta Manoel de Barros a
Turiba e João Borges, para a revista Bric-à-Brac e posteriormente publicada em sua Gramática expositiva
do chão (poesia quase toda), na seção “Conversas por escrito (entrevistas: 1970-1989)”.

FONTE: INTERNET
ILUSTRAÇÕES: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

* MUTUM: NOTAS DE FILMAGEM

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Sandra Kogut


A primeira pergunta que me fiz foi: será
que esta estória, escrita nos anos 50,
poderia ainda acontecer hoje? E, se
pudesse, como ela seria e qual seria a cara
desses personagens? Durante um ano e
meio fiz várias viagens pelo sertão de
Minas. Inicialmente para conhecer as pessoas,
o lugar, em seguida para procurar as
crianças do filme.

Achava fundamental que meu primeiro
contato com as pessoas fosse direto, sem
passar por intermediários tais como produtores
de elenco ou de locação. Porque se
não existisse uma relação de confiança
muito sólida entre eu e eles, seria impossível
trabalhar com atores não-profissionais.

Fiz as viagens com a Ana Luiza Martins
Costa – co-roteirista do filme, que conhecia
bem a região. Íamos nas escolas rurais
do Norte de Minas, algumas perdidas na
mata, onde as crianças vão a cavalo, ou
caminham horas para chegar. As professoras
me deixavam trabalhar com pequenos
grupos formados na hora. Na época, dizíamos
apenas que estávamos fazendo uma
pesquisa com crianças no sertão, sem
ainda falar que isso viraria um filme se
tudo desse certo.

Ao todo conheci em torno de mil crianças.
Numa segunda fase selecionei um grupo
de vinte e cinco, vindas de lugares diferentes
do sertão mineiro. Dentre as vinte
e cinco tinha um grupinho de sete que
eram as minhas preferidas, mas precisava
conhecê-las melhor. Será que elas agüentariam
fazer um filme? E por que elas
teriam vontade? O cinema não faz parte
da vida delas, e para muitas nem mesmo
a televisão.

Algum tempo depois, reunimos esse grupo
numa cidadezinha e, durante duas semanas,
fizemos pequenas oficinas, que me
permitiram escolher os meninos. Foi uma
experiência humana riquíssima. As estórias
daquelas crianças, suas personalidades,
seus comentários, foram desenhando
o universo no qual o filme se construiu.
Dois meses depois fizemos outra oficina,
dessa vez com homens e mulheres da região,
vaqueiros, senhoras, enfim, candidatos a
todos os personagens do filme que trabalharam
lado a lado com atores profissionais e
com as crianças. Todo mundo junto. Era uma
troca: de um lado os jovens atores – acostumados
com a situação de estar numa oficina
–, embarcavam com mais facilidade nos
exercícios propostos. De outro os não-atores
faziam todos os exercícios sem interpretar:
eles choravam e riam de verdade, trazendo
uma dimensão humana diferente ao trabalho.

A escolha das locações foi em função das
relações com as pessoas da região. Não era
uma questão de paisagem. Queria filmar
onde a gente tivesse estabelecido as relações
mais sólidas, onde eu me sentisse em
casa na casa das pessoas.

A escolha de filmar numa fazenda de verdade
não foi por razões etnográficas, mas
para permitir que o elenco compartilhasse
um cotidiano. Eles trabalhavam juntos,
cuidavam dos bichos, capinavam. A casa
funcionava. Quando aos poucos a equipe
técnica foi chegando, eles tinham vontade
de pedir licença pra entrar, como se estivessem
chegando na casa de alguém, e não
num set que estava ali à disposição.

A maior parte das pessoas que atuam no
filme não é ator profissional. A maioria
das crianças e dos vaqueiros nunca foi ao
cinema. Mutum é o resultado de um longo
trabalho de preparação, no qual o elenco
viveu junto na fazenda onde a história
acontece. Aos poucos formaram uma família,
antes mesmo do início da filmagem.

Dividiram uma experiência de vida, diretamente
ligada à história contada no filme.
Ninguém leu o roteiro. Tudo foi transmitido
oralmente e o trabalho de atuação se
construiu a partir da proximidade entre a
vida deles e a de seus personagens.


SANDRA KOGUT é cineasta. Estudou Filosofia e Comunicação
na PUC-RJ, realizou o documentário Um passaporte húngaro
(2001) e os vídeos Adieu monde (1998) e Lá e cá
(1995), entre outros.
FONTE: INTERNET
ILUSTRAÇÕES: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf