terça-feira, 3 de novembro de 2009

* DEZ APONTAMENTOS, A LÁPIS, NAS MARGENS DA TERCEIRA MARGEM.

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Paulinho Assunção

O primeiro apontamento é volumétrico: é
um livro, um microlivro, para conter um
rio. Mire e veja: tal rio é mais do que um
rio, pois o rio contido no microlivro é um
rio-conto, com duas margens e uma terceira,
que é antimargem. O rio-conto que
o microlivro contém é A terceira margem
do rio de João Guimarães Rosa. O microlivro
vem de Porto Alegre pelos engenhos
do grupo Aflecha e cada exemplar é único,
em seus unicamentes, pelo doce fazer da
artesania. E é distinguido com gravuras
em metal igualmente únicas. Os exemplares,
mínimos em minimidades e minudências
são: belos, belamente belos de guardar
no centro da palma da mão.

O segundo apontamento é geográfico: em
qual parte de nós fica a terceira margem
desse rio que receberá a canoa para tão
insondáveis e estranhas navegações roseanas?
Estranhas – eu assim digo – porque
são navegações de ir e vir, abaixo, acima,
curso-percurso sem chegada, curso-percurso
sem partida. E essa terceira margem
por onde navegará o pai será a mesma
margem das nossas perguntas que fica no
lado sem margem do nosso coração? Será
a margem dos nossos enigmas? E uma
terceira margem assim tão terceira caberá
em nossa palma da mão como o microlivro
do grupo Aflecha?

O terceiro apontamento é ideológico: de qual
margem o rio roseano é entrável para que
alcancemos sua terceira margem? Será
pela margem direita? Será pela margem
esquerda? Será que o acedível à terceira
margem é o mesmo ponto acedível que há
no Livro e nos livros? O acedível de ler, o
acedível da leitura? Ou será que a terceira
margem já é acedível em nós por nenhuma
nenhures de qualquer margem?

O quarto apontamento é memorialístico:
com olhos-de-espanto, também vi certa
vez uma terceira margem na foz do rio
Douro, não muito distante da casa do
poeta Eugénio de Andrade, no Porto. Era
uma procissão de gaivotas em um mesmo
ponto de rio onde a canoa de pau vinhático
do rio-conto roseano fez suas navegações.
Tal como o pai que se pôs em águasde-
não-voltar aos olhos daquele filho, as
gaivotas do Douro iam e vinham, recorrentes,
no mesmo curso-percurso, no
mesmo vértice de luz, a poucos metros do
Atlântico, o Atlântico – ei-lo sem margens,
pois não haverá por certo margens
em um oceano.

O quinto apontamento é metonímico: e se
então, por essa cena no Douro, a existência
de terceiras margens não for também
coisa e labor de pássaros? De pássaros e de
anjos? De loucos e poetas? E se os pais que
navegam em terceiras margens não forem
pais-em-águas, pais-feitos-de-água, paisdissolventes,
pais-dissolvíveis na bruma?

O sexto apontamento é um paradoxo: “Nosso
pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma
parte”. Qual nome então dar a esse
movimento de quem foi sem jamais ter
ido? O nome para isto é visível-invisível, é
presente-ausente, é encontrável-perdível?

O sétimo apontamento é fluviátil: por certo,
se há um ponto de rio onde um homem se
dissolve na recorrente navegação de ir a
nenhuma parte, onde é a travessia? Em
qual margem dá vau o rio-rio? Um rio é o
não-atravessável? Será então o teorema
da terceira margem a figura na névoa de
um todo nosso destino?

O oitavo apontamento é escritura: se margem
é borda, extremidade, beira, fronteira,
raia, umbral ou limiar, em que ponto
secreto do caderno fica a terceira margem?
Qual das nossas mãos pode escrever nessa
página? Escrever, então, em seu limite,
não será o cego bordejar em linha alguma,
em margem alguma? Terceira margem, por
onde navega o pai-texto, não será, aos
olhos do filho-ágrafo, o inalcançável da
escrita, o inatingível da palavra, o sempre
Sísifo em morraria de águas?

O nono apontamento é o encadernável: no
micro livro que contém A terceira margem
do rio, os gaúchos do grupo Aflecha encadernaram
o rio-conto em couro de porco,
puseram banho a ouro em suas páginasbordas,
fizeram caixa igualmente em couro
para guardá-lo, agregaram-lhe um marcador
– eis que agora podemos tê-lo entre os
dedos ou no bolso, o rio-rio, o rio mítico
porque é um anti-rio.

O décimo e último apontamento é relembrante:
foi em viagem noturna pelo trem
húngaro entre Paso de los Libres e Porto
Alegre, nos finais de 1973, que A terceira
margem do rio pela primeira vez esteve em
minhas mãos. E a leitura do conto na
noturnidade daquela vastidão dos pampas
pode ser que tenha sido o perigoso aprendizado
inaugural da escrita como terceira
coisa fora das margens.


PAULINHO ASSUNÇÃO é poeta, ficcionista e jornalista.
Publicou este ano o romance O hipnotizador, pela Campo
das Letras, de Portugal, mesma editora que editou em
2003 o seu livro de contos Pequeno tratado sobre as
ilusões, vencedor do Prêmio Minas de Cultura (Guimarães
Rosa)

Fonte: Internet
Ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

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