terça-feira, 3 de novembro de 2009

* GRANDE SERTÃO ATRAVÉS DO ESPELHO

.
Guilher Trielli Ribeiro


Grande sertão: veredas é e não é como qualquer
outro livro. Tem peso, massa, volume,
tamanho... E uma estória, que ocupa um
certo número de páginas. Entretanto, diferente
da maior parte dos livros, podemos
afirmar, com José Miguel Wisnik: “ler Grande
sertão: veredas não se esgota nunca, não só
como obra em si de indagação da condição
humana, mas também, e ao mesmo tempo,
de indagação da experiência de humanidade
brasileira. É uma obra de concentração de
vida e linguagem que tem que ser vista, sem
fetichização, como tal”.

A instalação Grande sertão: veredas, concebida
por Bia Lessa – montada em 2006
no Museu da Língua Portuguesa, em São
Paulo, e em 2007 no MAM, no Rio de
Janeiro, e depois transformada em catálogo
e cd-rom –, oferece ao visitante a oportunidade
de mergulhar na dimensão mágica
da inesgotabilidade de leitura e atinar
para a exigência ético-estética da nãofetichização
do livro referidas por Wisnik.
E realiza isso de uma maneira simples e ao
mesmo tempo profundamente engenhosa:
faz o visitante entrar no avesso da obra, o
livro em construção, tal como Alice, na
casa do espelho.

Porém o Grande sertão de Bia Lessa não pode
ser lido apenas como uma transposição paródica
do romance para a casa do espelho de
Lewis Carroll. Bia Lessa vai além: potencializa
o princípio da imagem refletida e cria o
que poderia ser definido mais apropriadamente
como o sertão dos espelhos. O princípio
da multiplicação dos espelhos pertence
tanto aos livros de Lewis Carroll e Guimarães
Rosa quanto à instalação de Bia Lessa e se
traduz, no limite, em jogos de linguagem.

Lembremos que, desde o momento em que
Alice entra na casa do espelho, é através da
linguagem que se relaciona com a realidade
mágica do lado de lá – tempo, espaço, personagens,
tudo é atravessado pela linguagem,
tudo se move na linguagem. Comento aqui
apenas três jogos que se encontram no livro
de Lewis Carroll e que também aparecem na
instalação de Bia Lessa. O primeiro deles,
talvez o mais óbvio mas mesmo assim fascinante,
está inserido no primeiro capítulo, “A
casa do espelho”. A certa altura Alice se
depara com o poema “Jaguadarte” e o contempla,
sem conseguir desvendá-lo de imediato.
Porém depois de algum tempo uma
idéia luminosa lhe ocorre: “É claro, só pode
ser, é um livro do Espelho! Se eu colocá-lo
diante do espelho as palavras vão ficar na
ordem certa outra vez”. Ora, precisamos fazer
exatamente a mesma coisa para ler os fragmentos
inscritos na trilha de Diadorim. Bia
Lessa explica o procedimento na apresentação
do catálogo:

Se seguissem a trilha de Diadorim, encontrariam
frases (escritas no avesso)
cobertas por uma lâmina de água, contidas
em galões (…). Sobre os galões,
presos no teto, um balde goteja lentamente,
dando vida a esse reservatório
que encobre fragmentos da obra. Para
ler, o visitante precisa fazer uso de um
espelho que estabelece um diálogo com
o ilegível. Diadorim se esconde e se
revela durante todo o romance.

Um outro jogo de linguagem, agora mais
sutil, fica sugerido no começo do segundo
capítulo de Através do espelho e o que Alice
encontrou lá, “O jardim das flores vivas” (na
tradução de Sebastião Uchoa Leite):

Eu podia ver bem melhor o jardim,
disse Alice a si mesma, “se pudesse
subir no topo daquele morro: e aqui
está um caminho que vai direto até lá…
ou pelo menos, não, não é tão direto
assim...” (depois de caminhar alguns
metros pela trilha, dobrando em algumas
esquinas bruscas), “mas acho que
afinal chego lá. É esquisito como esse
caminho se enrosca. Parece mais um
saca-rolhas do que um caminho! Bom,
por este lado aqui eu chego ao morro,
acho… não, não vai! Vai direto de volta
para a casa. Já que é assim, vou tentar
em sentido contrário”.

Nesse trecho vem indicado um dos jogos
inseridos no percurso de Riobaldo na
instalação. Ao segui-lo, o visitante se depara
com um amontoado de palavras e trechos de
frases inscritos sobre entulhos e que a
princípio se esquiva à decifração. Somente
depois de tentar ler tais escombros de
linguagem de diversos ângulos é que o
visitante descobre os mirantes em que deve
se posicionar para visualizar as passagens
completas – é preciso subir por uma escada
e obsevar o monte de entulho a partir de
uma mira, instalada em um ponto específico;
e só assim o amontoado a princípio ilegível
se torna claro, visível.

Um terceiro jogo de linguagem insinua-se no
começo do terceiro capítulo do livro de Lewis
Carroll, “Insetos do espelho”:
Claro que a primeira coisa a fazer era
um exame acurado da região que iria
atravessar. “É um pouco parecido com
as minhas lições de geografia”, pensou
Alice, enquanto ficava na ponta dos
pés, na esperança de avistar um pouco
mais longe. “Rios principais: não há
nenhum. Montanhas principais: estou
em cima da única que existe, mas acho
que não tem nome. Cidades principais…”

Na instalação, a “lição de geografia” está
presente no imenso mapa do sertão criado
por Marcelo de Almeida Toledo e reproduzido
em uma parede, crivado de monóculos
através dos quais se pode mirar e ver o “sertão
sem lugar”: o homem na lua, um vulcão,
um supermercado, o mar, Londres, etc.

Há muitos outros jogos de linguagem nas
aventuras de Alice pela casa do espelho e
muitos outros há na experiência do visitante
da instalação de Bia Lessa. Porém, quanto a
estes últimos, o mais importante é destacar
que todos eles colocam o espectador em situações
que possibilitam o contato direto com
fragmentos da obra-prima de João Guimarães
Rosa e despertam no visitante-leitor-personagem-
espectador um efeito curioso, de
entrada ao mesmo tempo súbita e gradual no
idioma rosiano. Gradual porque nos faz
saborear por partes a linguagem do autor e ir
aos poucos tomando consciência da imensidão
do livro. E súbita porque os jogos estão
ali a requisitar a todo instante o lado lúdico
de cada um. Como a própria artista indica, as
palavras deveriam ser expostas a partir do
leitmotiv “Mire e veja”: “Não basta olhar,
temos que enxergar. Focar o olhar. As palavras
teriam que ser conquistadas, não poderiam
estar expostas simplesmente. Criamos,
então, para cada percurso, situações diferentes
em que o espectador teria que se disponibilizar
para compreender”.

Toda essa insistência sobre a questão dos
jogos de linguagem remete ao lema de
Guimarães Rosa, que Bia Lessa parece ter
tomado como rosa-dos-ventos ao pensar a
instalação:

Meu lema é: a linguagem e a vida são
uma coisa só. Quem não fizer do idioma
o espelho de sua personalidade não
vive; e como a vida é uma corrente
contínua, a linguagem também deve
evoluir constantemente. Isto significa
que como escritor devo me prestar con-
tas de cada palavra e considerar cada
palavra o tempo necessário até ela ser
novamente vida. O idioma é a única
porta para o infinito, mas infelizmente
está oculto sob montanha de cinzas.

Revirando um pouco a idéia decisiva desse
lema, pode-se considerar: o idioma rosiano
é uma porta para o infinito. Bia Lessa lança
mão dessa característica central da linguagem
rosiana justamente para a fazer refletir
plástica e cenicamente. Em conseqüência
dessa laboriosa construção, as situações criadas
a partir do contato entre o visitante e a
instalação traduzem, das formas mais variadas,
a obra máxima de Guimarães Rosa.

Em linguagem corrente, a expressão livro
aberto significa não ter segredos. Na instalação,
o original do Grande sertão (datilografado
e corrigido pelo próprio autor) está
exposto literalmente aberto em uma redoma
de vidro. E esse fato paradoxal intensifica
ainda mais sua aura. A luminosidade âmbar
do espaço, intitulado com a primeira palavra
do romance, “Nonada”, e a espantosa
beleza de Maria Bethânia lendo o trecho
final da narrativa, parecem brotar do próprio
livro, figurando, a seu lado, como arremate
da instalação, nascedouro para onde
todos os percursos convergem. A reprodução
do original, por sua vez, também está
aberta, no alto da sala, sob a forma das 415
bandeiras suspensas que podem ser livremente
acessadas pelo visitante, tal como
balões-cativos. Os percursos e todos os
demais jogos de linguagem, com suas possibilidades
infinitas de variação, de certo
modo também são livro aberto, convites ao
jogo sem fim.

Todos esses signos poderiam ser interpretados
como índices de fetichização da obra,
tendo como resultado o reflexo hipertrofiado
de sua aura e a mais extrema desintegração
de seu sentido – o esvaziamento do
sertão em um não-sertão. Outra forma de
considerá-los seria através do veio crítico da
instalação, que, como Humpty Dumpty, teria
realizado a hermenêutica total do romance...
Nesse caso, a instalação corresponderia à
suma ilusória de que o romance haveria sido,
ao fim, exaustivamente explicado, tendo
deixado, logo, de conter segredos.

Mas o Grande sertão de Bia Lessa modifica
o sentido desse dizer, transformando-o em
uma contradição profundamente bela. E
embora a instalação seja um grande livro
aberto, ela ao mesmo tempo revela e oculta,
guarda e não guarda segredos. A instalação
ressalta o aspecto inacabado, de
eterna construção, da obra rosiana. A
expressão livro aberto, nesses termos, recupera
as ambivalências contidas na própria
palavra obra (o que está feito, o que se está
fazendo). A obra-prima, os materiais de
construção. Todos somos capazes de entender
sua linguagem e ao mesmo tempo ficamos
enredados em seus enigmas. Afinal de
contas, como explicar a experiência do
infinito? Como fazer da linguagem e da
vida uma coisa só? Interminável tarefa de
retirar de montanha de cinzas o idioma.
Não o de Guimarães Rosa, que fez da linguagem
a morada do sertão; mas o nosso,
que ainda apenas por partes compartilha
do milagre dos peixes...

Eis a instalação de Bia Lessa e um pouco do
que encontramos lá.


GUILHERME TRIELLI RIBEIRO formou-se em letras na UFMG
e nessa mesma instituição recebeu o título de Mestre em
Literatura Brasileira, com a dissertação O ouvido armado:
a música na obra de Murilo Mendes. Atualmente é aluno
da Brown University, nos Estados Unidos, e escreve

Fonte: Internet
Ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml

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