terça-feira, 3 de novembro de 2009

* NO PANTANAL COM J. G. ROSA.

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Manuel de Barros


Andamos para ver a roça de
mandioca. Tatu estraga muito
as roças por aqui. Há muito
tatu, Manoel? Eles fazem
buraco por baixo do pau-apique,
varam pra dentro da
roça, revolvem tudo e comem
as raízes. Remédio contra
tatu é formicida. Fura-se um
ovo, bota formicida dentro e
esquece ele largado no solo
da roça. Rolinha passa por
cima e nem liga. Mas o tatu
espuga, vem e bebe o ovo.
Sente a fisgada da morte
num átimo e sai de cabeça
baixa, de trote para o cerrado,
pensando na morte... Homem
é igual, quando descobre sua
precariedade, abaixa a cabeça.
Já sabe que carrega sua
morte dentro, seu formicida.

Essa é nossa condição – Rosa
me disse. Falou: eu escondo
de mim a morte, Manoel.
Disfarço ela. Lembra o livro do nosso Alvaro Moreira? A vida é de
cabeça baixa? Deveria de não ser – ele disse. Chegamos perto
da metafísica. E voltamos. Havia araras. Havia o caramujo perto
de uma árvore. Ele disse: Habemos lesma, Manoel. Eu disse:
caramujo é que ajuda árvore crescer. Ele riu. Relvas cresciam nas
palavras e na terra. Rosa escutava as coisas. Escutava o luar
comendo árvores. E, como é o homem aqui, Manoel?

Eu fui falando nervoso. Ele queria me especular. O homem se completa
com os bichos – eu disse –, com os seus marandovás e com as suas
águas. Esse ermo cria motucas. Por aqui não existem ruínas de civilizações
para o homem passear dentro delas. Só bichos e águas e árvores
para a gente ver. Não têm coisas de argamassa, ferragens destripadas
do deserto, essas coisas que aparecem nos relentos da Europa. Aqui é
brejo, boi e cerrado. E anta que assobia sem barba e sem banheiro. Rosa
me olhou de esguelha. E árvore, Manoel, o nome de algumas, você me
dará? Aqui o que sabemos é por instinto e por apalpos. Não é como o
Senhor faz com as palavras. Ele me olhou mais ao fundo. – Como sabe
que eu mexo com palavras? Você é daqui, Manoel? Sou pantaneiro de
chapa e cruz. Sou puro de corixo e de vazantes. Ele quis me descobrir.
Me empedrei. Quer saber qual o nome que tal árvore tem aqui. Quer saber
o nome daquele passarinho que pula no brejo, cor de café, e como é
que ele canta. A gente só sabe essas coisas por eflúvios, por ruídos, pelo
faro. Mas sempre se pode errar pelo faro. Pensa que vai dar na guabiroba
e dá no guaviral. A gente não sabe o cultural desses entes de folha e de
asas. Só se sabe o natural. O que se vê. A cor do ovo que botam, o duro
do vôo, a casca, a resina, os excrementos. Aqui toda árvore a gente chama
de pé-de-pau. Menos aquelas de fazer cerca, madeira de lei, vinhático,
aroeira, piqui, piúva. E mais aquelas de onde se tira medicina: paratudo,
nó de cachorro, mangava brava. E mais as qualidades de mel que
dá no pé-de-pau: jati, manduri, borá, d’oropa, sanharão, mandaguari,
arichiguana. E passarinho, Manoel? Rosa me especulava por trás do
couro, como quem sonda urubu. Queria saber de um tudo. De avoador,
eu disse, só urubu, garça, cracará – esses pássaros grandes. O resto quase
é inominado. Passarinho pequeno é passarinho à-toa. Rosa sabia essas
coisas, só estava me sondando. Falei para ele. Isso é como a gente não
saber o nome de todas as pessoas que vão atravessando o Viaduto do
Chá. Rosa estrelou sua risada. É isso mesmo, Manoel! É tanta gente que
não se sabe o nome. E passarinho é a gente daqui. E o tordo, qual é a letra do canto que ele canta? A música eu sei de cor, mas a letra eu não
sei – ele disse. A letra é assim: Primo com prima não faz mal, finca finca...
Oi tordo erótico, Manoel. Os lá de Minas têm mais compostura, ele
disse. E sapo, lá tem demais?, eu perguntei. Tem quase menos que por
aqui, ele disse. Mas os poucos que tem lá cantam mais bonito. Queria me
desafiar. Eu disse: Mas, Rosa, pode reparar uma coisa: no canto do nosso
sapo tem uma curva luminosa... Rosa gostou. Nossa conversa era desse
feitio. Ele inventava coisas de Cordisburgo. Eu inventava coisas do
Pantanal. Rosa andou por aqui em junho de 1953. Já havia publicado
Sagarana e estava consagrado. Não tinha fim a sua curiosidade. Dava
ares de um rei, às vezes. Mas o rosto merecia anjo. Eu tinha informações
de seu gosto por línguas, idiomas. Traçava até línguas arrevezadas: checo,
aramaico, sei lá. Queria saber guarani. Foi no caderno, virou, virou,
me perguntou. Manoel, que quer dizer não tem nhamonguetá nem bugerê.
Tentei traduzir. Quer dizer: não tem conversa nem vira de lado. Isso é
guaranês, falei de orelhada. Mas Rosa quer saber a origem, quer saber a
explicação de tudo. Rosa se aplica nas palavras com o fundo indagar.

Fica imaginando. Recorre a outras línguas de raízes tupi. Faz desenhos
de letras no caderno. Excogita. Disse pra ele que o Patanal quase teve um
dialeto. Muitos anos os moradores ficaram isolados. Isto se fez uma ilha
lingüística. Palavras sofriam erosões morfológicas ou semânticas. Outras
eram criadas. E algumas sumiam por serem de cidade. Por exemplo,
Manoel, uma palavra que sofreu erosão? Aqui se mata uma capivara
para comer e a primeira coisa que se faz é tirar da capivara a misca. A
misca é uma catinga, um cheiro forte localizado no lombo de capivara.
Muitos anos vivi com essa palavra, e agora sei. Rosa disse: vem de almíscar,
né? Sim, vem de almíscar. Almíscar sofreu uma erosão nas duas
margens e virou misca. De palavra o Rosa sabe tudo. E me explicou:
almíscar é uma substância odorífera... etc. E por que não se completou o
dialeto, Manoel? A ilha não é mais ilha. Agora caminhão atravessa, fordeco,
avião. Mascate chega de carro, e o rádio desemboca músicas e falas
estranhas. Pode me dizer alguma expressão que ficou do dialeto, alguma
invenção? O verbo clarear, por exemplo. Aqui ele tomou um outro significado.

Assim: clarear de uma pessoa, é fugir dela. A expressão vem de
quando, nas corridas de cavalo, aquele que vai na frente, avança mais de
um corpo sobre o outro. Se avança mais de um corpo, o cavalo faz luz
dele para o outro. Quer dizer: clareia do outro. Para dizer que se deixou
a namorada se fala: clareei dela. Rosa acha que se obedeceram as leis da
formação de um dialeto. E o folclore, Manoel? Pantanal tem pouco folclore,
pois se trata de pouso relativamente novo. Há quem misture folclore
com bichos, coisas exóticas. Aqui não há nada exótico. Turista não
precisa vir atrás de exótico. O que tem aqui tem em toda parte. Mas de
folclore, que é outro departamento, tenho um amigo, Neto Botelho, que
sabe das coisas, que informa sobre nosso monumento nessa área que é o
cavalo. Cavalo é nosso enfeite, nosso instrumento de trabalho, nosso
meio de transporte, nosso amigo, nossa arte. Com ele se ganha o pão,
com ele se vai namorar. Ofereço ao Rosa um poema do Neto Botelho
sobre um cavalo que teve:

“Tive um cavalo ruano
De nome Balança-os-Cachos
De cheirar e mandar guardar
Cavalo de confiança
Pegava em quarenta metros
Galardão de cola e ancas
Um ente desanormal
Coisa de prateleira
Ventena como o fedor
Não foi de ensebar serviços
Nem teve queda pra cangas
Pastor de primeira instância
Cavalo de putear delegado
Livre como as vertentes
Podia até lavar louças
Leve de patas que era
Só faltava ir no cinema.”

Rosa tomou nota. Gravou na caderneta. Anos depois fui ver na Casa de
Ruy Barbosa, onde se fazia exposição dos cadernos de Rosa, mas lá não
encontrei o poema. Aliás vi poucas notas da viagem de Rosa ao Pantanal.

Quis saber, ele, ainda, dos meus receios sobre as confusões com o exótico.
Falei, falei demais, espichei. Dei a entender que se estava olhando o
Pantanal só como uma coisa exótica. Um superficial para só se ver e
bater chapa. Mesmo os que o cantavam em prosa e verso ficavam enumerando
bichos, carandá, tuiuius, jacarés, sariemas; e que essa enumeração
não transmite a essência do Pantanal, porém só a sua aparência.

Havia o perigo de se afundar no puro natural, etc. Precisamos de um
escritor como você, Rosa, para freiar com sua estética, com a sua linguagem
calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o nosso
verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a
natureza. Humanizá-la. Rosa fez tudo isso alguns anos depois, dando a
público o seu Com o vaqueiro Mariano, um livro intenso de poesia e
transfigurações. Dele recebi um exemplar dedicado. – Olha aí, Manoel,
sem folclore nem exotismos – como você queria. Só vi Guimarães Rosa
outras vezes na Divisão de Fronteiras de Itamaraty, e em sua posse na

Academia, três dias antes de morrer. A morte que levava no corpo. E que
nem pôde dessa vez esconder-se dela... Esse gênio eu conheci e tenho
orgulho disso.

Extrato de “Pedras aprendem silêncio nele”, entrevista concedida pelo poeta Manoel de Barros a
Turiba e João Borges, para a revista Bric-à-Brac e posteriormente publicada em sua Gramática expositiva
do chão (poesia quase toda), na seção “Conversas por escrito (entrevistas: 1970-1989)”.

FONTE: INTERNET
ILUSTRAÇÕES: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

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