terça-feira, 3 de novembro de 2009

* O HOMEM DA CADERNETA

.

Adriana Melo
para Sonia Queiroz

Umburana, roxo-lã, xererém, proporema, neblim.
Palavras com canto e plumagem aqui se lêem. É
uma só folha de caderno vincada e redobrada pelo
tempo, os traços de esmerada caligrafia: caçununga,
concliz, sinimbu, irara. Ali, ocultando
uma palavra, na margem esquerda da página,
uma gota espesso-escura em relevo revela. Sangue
de rês? Suor de cavalo? Folha macerada? Sobrevôo
de pássaro? Dali se podia ouvir o farfalhar das
folhas de buriti festejantes sob a regência do
vento. A folha e suas andanças guardam em mim
o risco dos lugares, com seus cheiros, sons, cores
e formas. Lugares de partida e de chegada. Lugares
de intermeio. Não sei por que poder de magia
veio essa folha pousar na minha tralha. Campeamos
manhãzinha o dia todo no rastro de um
bezerro baguá por ordem de curar o seu pescoço
que já formava larvas de bicho, arranhado pelas
garras de uma onça. Por rara e extrema força de
alma, a vaca-mãe o defendeu com sucesso da
morte. O vaqueiro Mizi o tinha visto no dia anterior,
mas, antes que pudesse armar o laço, a boiada
correu em disparada, dando anúncio da tempestade
que devagar tramavam as nuvens.
Seguíamos em comitiva: a cavalo, sete homens
bem trajados em capa de chuva fusco-parda.
Oblonga e grossa, a lona das capas formava um
bonito desenho triangular do estado dos cavaleiros
sob a chuva fina. Um, de fora, doutor de
variados lugares, sem desapear do cavalo, em
tudo apeava os olhos com aguçada demora e
valor, posto no qualquer espetáculo de uma visagem:
um pássaro em vôo, um guincho de bicho,
um coró, uma moita de espinho cançanção, uma
ramagem rotineira, um aroma, uma semente,
uma folha, uma pedrinha, uma pedra de rio, a
água, uma pena de ave, raízes. De tudo queria
saber o nome, perguntava, apreciava, especulava
histórias, escutava. Ao que, então, sacava de uma
caderneta de capa de couro cru e tomava nota,
escrevia, poetava. Outros cavaleiros, tirante o
patrão, éramos peões da Fazenda Firme: Mariano,
Zé Deoclides, Seu Bugre, Mizi e eu. Transpúnhamos
os horizontes de capim mimoso, várzea e vazantes,
mais para dar passeio ao doutor do que por
poder de trabalho à caça do bezerro. Até o fedegoso
e a guanxuma, umas pragas assim, atraíam
os olhos daquele homem, uns olhos postos no
infinito de uma vivacidade álacre, descomedidos
em permanente riso, a registrar o movimento do
ser das coisas, seu nome. Naquele tempo nada
tinha limites para ser. Tomava nota também com
os olhos que pareciam riscar no espaço a trajetória
do vôo de cada espécie de pássaro, ave. Guardava
pássaros, fixava-os livres dentro de si com
o risco dos olhos: queria crescer pra passarinho,
ele dizia. Este é a anhuma, aquele outro, o cabeça-
seca, o mutum, a garça-real, a garça-boieira,
a garça-pantaneira, o tuiuiú, o biguá, o cafezinho,
o róseo colhereiro: arrebol.

A tarde tingia de rosa o céu da Nhecolândia, beleza
rebrilhada em tudo. À beira de uma vazante,
parei o cavalo, apeando por impulso de intuição
para apanhar uma pena de colhereiro pousada na
lanugem da margem. O róseo-vivaz da pena era
que dava colorido à tarde? Entreguei a pena para
a contemplação e admiração do doutor que, muito
a contento, me perguntou se eu era dali, se era de
outros lugares. Ele punha muito sentido na conversa
da gente. Guardava na caderneta a língua
dos homens, do vôo dos pássaros, da alma dos
bois, do estar das árvores? Nasci na Vila do Livramento,
povoado mato-grossense à beira do pantanal
de Poconé. Trabalhei para muitos patrões de
todos os pantanais existentes: Poconé, São
Lourenço, Miranda-Aquidauana, Nabileque, Nhecolândia,
Paiaguás,... Isso sim que eu sou... Sou da
beira do rio... Sei lá de onde é que eu sou?! Sou
donde nasci. Sou de outros lugares. A minha terra
era longe dali no restante do mundo. Longe é
lugar nenhum. Leio essas palavras na caderneta.
De onde veio e para onde foi aquele homem? De
onde era? De fora? Dali?

Não encontramos o bezerro, mas um ajuntamento
de porcos-queixada que, com altiva ousadia,
cercou nossos cavalos, empinando o peito e
batendo os maxilares, num feio ruído, mordendo
o ar com brabeza, em firme ameaço de ataque
fatal. Eram uns cem, que queixada só anda assim,
em bando. Ao que Seu Bugre sacou da capanga a
espingarda flobé e lançou pro alto o tiro, o bando
espantou em disparada. Ali tinha porcos de muitas
raras graciosas espécies: o miúdo e valente
queixada, o graúdo caititu, o porco-espim, o porco
de casa que virou selvagem. Costume pantaneiro
era criar o porco de casa às soltas, no quintal, de
onde, muitos fugidos, dextraviados, viravam em
bravos, alongados no mato. Ali engordavam com
a fartura de alimentos do lugar: o capim mimoso,
o coquinho bocaiúva, os muitos outros cocos, as
tantas raízes. Dado o tempo da engorda, os peões
saíamos à caça dos porcos, carne muito apreciada.
Eu era muito moço naquela época, um quase
guri, e nunca me esqueci daquele homem, entre
todos os tantos esquipático, capaz de inventar
uma tarde a partir de uma garça. Este é um caderno
de haver frases nele, pronunciou à exclama,
enquanto Seu Bugre dizia que as pedras ensinam
o homem: “Quem não entende lição de pedra é
bocó”. A pedra corrompe os silêncios da palavra?
Hoje aposentado, pratico o ofício da peonagem por
imaginação de pôr versos nas minhas histórias
para o bom acompanhamento da viola de cocho
no cururu e para os bons passos da catira e do
siriri. Adquiri chácara no Livramento e vivo aqui
pertencendo de fazer imagens. Não encontramos
o bezerro. A vaca-mãe o amoitou por mais poder
de cuidar dele? Voltamos no meio do rosáceo do
céu, rosa-dos-rumos. À noitinha, chegados na
Fazenda Firme, fiquei com a tarefa de desarrear
os cavalos, banhá-los no rio, dar-lhes escova e
milho. Foi então que, dentro da minha capanga,
junto à guampa, lampejou a folha. Tirei-a dali.
Não seria uma folha do caderno de haver frases?
Como havia de ter pousado ali? Do rancho, fui
direto à casa do patrão: “− Por acaso, encontrei
na minha tralha esta folha de aparente pertencimento
ao doutor do bom gosto dos pássaros.” “O
doutor acabou de sair em viagem”, ele me respondeu.
Não carecia de devolver a folha. Guardei-a
desde então junto de mim, de viagem a viagem,
por todos os lugares desses pantanais haventes.
Aquela tarde houve mesmo de se existir, de se estar
nela? Nunca mais tive notícias daquele homem.
Saiu na noite? No vento? Sumiu nas águas?

O mimosinho brilha belezas soletradas: o fim de
tarde no Livramento tem vento norte. Vento
vindo do norte traz sempre chuva boa e certeira.
Mas isso era no tempo das águas que hoje as
águas parecem não mais ter tempo. Apalpo a
folha pautada de palavras: tudo que não invento
é falso. Por poder de encantamento quis essa
folha pertencer-me. Eu só queria trazer para o
meu canto o que pode ser carregado como papel
pelo vento: do lugar onde estou já fui embora.
Não preciso do fim para chegar. As palavras me
escondem sem cuidado. Aonde não estou as palavras
me acham. O vento não trouxe chuva: tingiu
de rosa a tarde. O vento era que trazia colorido à
tarde? A gota espesso-escura da folha pausa a
caligrafia? Pauta o caligrafável? Não vi mais o
bezerro. Toco o relevo da gota espessa: Sangue de rês? Suor de cavalo? Silêncio? Ilha de nomes? O
silêncio só é dizível no inominável. Aquilo que
não se traduz é que é o mais próprio traduzível.
Tudo o que não existe é por demais forte. A tarde
está rosa no olho das garças. Um bando de colhereiros
cruza o céu, lembrando-me da história
contada por minha avó. Ela dizia que, em terras
de África, os flamingos, cruzando o céu em fins
de tarde, empurram o sol para que o dia chegue
a outros paralém. Lá, esse momento é sagrado,
não se pode falar, nem mexer. Entoa-se, então,
um canto, de invento, de ouvido: “− Este canto é
para eles voltarem, amanhã mais outra vez.” Os
colhereiros levavam o sol para outros lugares?
Desnomes? A rósea luz do céu é pássaro voante?
Minha avó dizia que o céu se vertebrava ao vôo
dos flamingos e a nuvem, adiante, não era senão
alma de passarinho: “E o pássaro ia desfolhando,
asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais
um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu
que o horizonte se vermelhava.” Sinto o cheiro da
flor do alecrim, flor que se abre em capítulos. No
céu, os últimos tons de rosa desvanecem. Para
encontrar o rosa eu uso pássaros: o arrebol lateja
a pena, perfumes do sol. Por isso é que eu canto.

O OLHO DO CONTO
O homem da caderneta nasceu de uma brincadeira de
inversão: Guimarães Rosa escreveu personagens que,
munidos de cadernetas, punham-se a anotar o nome
das coisas: pássaros, rios, insetos, arbustos, árvores,
lugares, línguas. Coisas com vida. Pôr no papel por
palavras caligrafadas coisas com vida é costume também
do escritor Guimarães Rosa, homem de muitas
cadernetas, assim como de outros escritores, afeitos aos
cadernos de haver frases nele. A brincadeira consiste,
aqui, em fazer uma troca: dessa vez, o escritor é que é
escrito como personagem caligrafador de belezas. As
outras águas do conto vêm da viagem vivenciada pelo
escritor, em torno de 1952, à Nhecolândia, pantanal
sul-mato-grossense, retratado em Estas Estórias: “Entremeio
com o vaqueiro Mariano” na Fazenda Firme.
Águas de minha origem.
ADRIANA MELO é mato-grossense de Rondonópolis, graduada
em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais; Especialista
em Turismo e Desenvolvimento Sustentável pela UFMG;
Mestre em Geografia pela UFMG e Doutoranda em Geografia
também pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Fonte: Internet
Ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário