terça-feira, 3 de novembro de 2009

* UM AMOR ASSIM PODE VIR DO DEMO

.
Maria Angélica Melendi


Sete gravuras de GS: V,
de Arlindo Daibert
Acessar: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf


... O AMOR ASSIM PODE VIR DO DEMO? PODERÁ?!
PODE VIR DE UM-QUE-NÃO-EXISTE? MAS O SENHOR
CALADO CONVENHA. PEÇO NÃO TER RESPOSTA;
QUE, SE NÃO, MINHA CONFUSÃO AUMENTA.
GUIMARÃES ROSA

l.
... Amor dêsse, cresce primeiro; brota é depois. Sob a
frase, cortada na madeira, dois passarinhos – iguais
– mas não idênticos –, se observam. Entre eles, a
caveira de um boi. Uma amêndoa divide a já divida
assinatura: 8 A (()) D 2. Arlindo Daibert, (19)82. O
título da gravura é Diadorim. Diadorim que soube se
chamar Deodorina: presente para Deus, a Deus dada...
Diadorim que aparece apenas em imagem como um
passarinho: o manuelzinho da crôa:

“É aquele lá: lindo!” Era o manoelzinhoda-
crôa, sempre em casal, indo por cima
da areia lisa; eles altas perninhas vermelhas,
esteiadas muito atrás traseiras,

desempinadinhos, peitudos, escrupuosos
catando suas coisinhas para comer
alimentação. Machozinho e fêmea – às
vezes davam beijos de biquinquim – a
galinholagem deles. – “É preciso olhar
para esses com um todo carinho [...]
Reinaldo disse. [...] De todos, o pássaro
mais bonito gentil que existe é mesmo
o manuelzinho-da-crôa.”

II.
Arlindo Daibert dissemina nas gravuras símbolos do
feminino e do duplo: pássaros, cobras, triângulos,
hexagramas, mandorlas, luas e fases da lua. Semeia
em secreto os preciosos vestígios da identidade de
Diadorim: emblemas, signos mágicos usados no
sertão como amuletos de proteção.

“... no Sertão [...] a magia é inseparável
de todos os aspectos da vida, os valentões
costumam às vezes trazer letras
cabalísticas escritas, digo, gravadas, no
chapéu de couro, ou papeizinhos enfiados
no respectivo forro; para, virtudes
várias, proteção perante o perigo.”

O passarim mais bonito e engraçadinho alinha-se em
guirlanda na gravura espelhada, produzida através da
impressão duplicada de uma única matriz. A cobra
serpenteará, também em espelho, entre as palavras e
as imagens.

III.
Dos buritis ao sertão, o perigo espreita: invisível. A
imagem do Diabo se subtrai, furtiva, do universo das
imagens e explode, desembestada, em pletora de palavras.
Exorcismo, ladainha, invocação?
o austero, o ele, o cujo, o xu, o dê, o ocultador, o
severo-mor, o indivíduo, o galhardo, o sôlto-eu, o
homem, o sujo, o aquele, o pai da mentira, o quediga,
o rapaz, o dê, o dia, o dianho, o diogo, o diabo,
o canhin, o canhoto, o canho, o que-nunca-se-ri, o
sem-gracejo, o figura, o dos-fins, o ma-encarado, o
dado, o romão

Dividindo, esfacelando o nome próprio do diabo, a
imagem de um monstruoso esqueleto fende a rogação
que campeia sobre uma macabra fileira de caveiras.
Imagens de letras, imagens de frases, imagens de símbolos,
imagens de imagens se articulam em composição
simétrica e austera. Como uma lápide sobre cuja
superfície se concentrassem as memórias extraviadas
do não acontecido, os restos do quase não lembrado.
A lâmina da goiva corta a madeira e faz nascer nela
os testemunhos de um mundo atravessado de espectros
e miragens.

IV.
O demo multiplica-se e prolifera no exército de
jagunços-caveiras. A desordem, a loucura, “os crespos
do homem”: o diabo, “o outro lado de Deus, uma
armadilha sua”.
Não resta nada ou quase nada da ironia mordaz da
tradição mexicana. As caveiras de Arlindo Daibert
não são as caveiras de José Guadalupe Posadas.
Esquemáticas, as imagens de Arlindo desfilam uma
sombria sucessão de restos humanos. Deles sobraram,
apenas, cicatrizes no taco de madeira ou marcas sobre
o papel. Uma força arcaica a arrancar da escuridão as
luzes de um universo de fantasmagorias, impregnado
de amor, de loucura, de morte, sobrevive.

V.
A mandorla – a amêndoa mística –, não está envolvendo
o corpo de Nossa Senhora nem dos santos.
Descarnada, apenas um sexo feminino separado do
corpo, testemunha do que não quis ser, é custodiada
por dois esqueletos simétricos. O igual é a moldura do
diferente. O símbolo da vida, da origem da vida, do
oculto, do interditado, do inviolável, entrelaça-se à
morte numa heráldica paralela e exata.

Diadorim, aquela que foi a Deus dada, aquela que
oculta e preserva sua essência feminina. Diadorim
não é Joana D’Arc. Diadorim não exibe nem proclama
sua ímpar temeridade de donzela guerreira.
A fêmea se desvelará somente nos despojos do
corpo morto.

VI.
“Em folhas grandes de papel, com capricho tracei
bonitos mapas”, narra Riobaldo – homem cindido
entre o sertão e o ser, entre a natureza primordial e as
letras. O mapa do sertão sobre os símbolos somados
de uma vida sem fim porque cíclica e imutável. O
mapa do sertão duplicado num mapa circular onde
uma cobra – Ouroboros, o Urutu-Branco – morde a
própria cauda em torno do infinito.

“Mas, você é outro homem, você revira
o sertão [...] Tu é terrível, que nem um
urutu branco [...] O nome que ele me
dava, era um nome, rebatismo desse
nome, meu. Os todos ouviram, romperam
em contanto que logo gritavam
entusiasmados:

“– O Urutú-Branco! Ei, o Urutú-
Branco!”

VII.
As quatro faces da lua ocupam os quatro ângulos do
plano obscuro. Dois círculos concêntricos envolvem o
infinito. O mais externo está formado por duas
cobras, uma branca e outra negra. Cada uma morde a
cauda da outra. Ouroboros duplicada entre as luas.
Deus e o demo? Ouroboros, a serpente ctónica e celeste,
que simboliza o tempo e a continuidade da vida,
será relida e retrabalhada em vários avatares. Seu
círculo sem fim será transformado por uma dobra
numa torção temporal, numa fita de Moebius, num
signo do infinito.

“O senhor vê? O que não é Deus, é estado do demônio.
Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio
não precisa de existir para haver – a gente sabendo
que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo".
Fragmentárias e fantasmagóricas estas sete gravuras
de GS: V de Arlindo Daibert são sempre esquemáticas,
sempre inconclusas, prontas a se dispersarem,
não estivesse a nitidez do talho e a consistência da
tinta a dar substância e espessura a esses corpos feitos
tão-só de palavras.


• ARLINDO DAIBERT nasceu em Juiz de Fora, MG, em 1952 e
faleceu em 1993, nesta mesma cidade. Foi desenhista, gravador,
pintor, construtor de objetos e professor. Reconhecido
como um dos artistas mais significativos de sua geração, suas
reflexões sobre arte foram sistematizadas por Júlio Castañon
Guimarães no livro Caderno de escritos/ Arlindo Daibert
(Sette Letras, 1995). Em 1998, a Série Grande sertão: veredas
foi publicada no livro Imagens do Grande Sertão, com
textos críticos de Júlio Castañon Guimarães e Heloísa Starling
(Editora UFMG, Editora UFJF).


• MARIA ANGÉLICA MELENDI é argentina, vive e trabalha no
Brasil desde 1975. É professora adjunta da Escola de
Belas Artes da UFMG e pesquisadora do CNPq. Investiga
as estratégias de memória desenvolvidas pela arte contemporânea
na América Latina em relação aos terrorismos de
estado e à violência social.

Fonte: Internet

Ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml

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