terça-feira, 3 de novembro de 2009

* UMA NOVA QUALIDADE DE HOMEM

.
Raquel Tamoio - Cacá carvalho – Leonardo Ventura

Era um sábado. A viagem não seria de trem,
como talvez conviesse. O desenho vertical da
cidade foi ficando para trás, num solitário
afastamento. Já passava das onze quando cheguei
à Pousada das Flores, em Cordisburgo,
onde Cacá Carvalho não me esperava, embora
tivéssemos nos falado dias antes. Pude encontrá-
lo algumas horas depois, já pela tarde,Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml
assim como aos atores da Casa Laboratório,
momentos antes da apresentação de O homem
provisório, motivo da nossa conversa. Ali,
diante do palco – também ele provisório,
levantado na quadra de um ginásio da cidade
–, falamos de Rosa e Cariri, de teatro e sertão.
E além.

OS DOZE TRABALHOS

Foi decidido que a gente iria trabalhar sobre o
Grande sertão: veredas e utilizamos, nessa
primeira fase, um tratamento de texto feito
pelo Cacá Brandão, que eram extratos do livro
agrupados por temas. Ele selecionou, por
exemplo, tudo que se relacionava com o que
Riobaldo fala sobre o sertão, e chamamos
aquilo de “capítulo sobre o sertão”. O que ele
fala sobre Diadorim compôs o “capítulo sobre
Diadorim”, e assim por diante. Depois de lermos
o livro, nos reunimos e então o Cacá
Carvalho nos propôs doze tarefas, a partir desses
capítulos. Tínhamos um mês para desenvolvê-
las. Entre elas: o sertão, Deus e o Diabo,
o jagunço Riobaldo, Diadorim, a revelação, o
pacto com o Diabo, o Liso do Sussuarão, não
me recordo de todas. Mas, depois desse primeiro
mês, voltamos a nos encontrar e ficamos,
durante uns dois meses, apresentando
essas tarefas e trabalhando sobre elas.

A ESPESSURA DE UM MUNDO VIVO

Nós tínhamos um contato direto da Fundação
Pontedera com a Fundação Casa Grande, em
nova Olinda, que é uma cidade do sertão de
Cariri, próxima a Juazeiro, Crato, ali naquela
região. Foi armado um intercâmbio entre a
Casa Laboratório, a Pontedera e a Fundação
Casa Grande, e fomos para lá já numa segunda
fase do processo de trabalho, para desenvolver
o material que a gente já tinha e colher outras
coisas da região, da cultura local, enfim. E aí
ficamos morando na casa das crianças que
fazem parte dessa Fundação Casa Grande, que
é uma fundação em que só as crianças cuidam
de tudo, de teatro, de sala de vídeo, biblioteca,
gibiteca... É uma coisa impressionante, no
meio do sertão, uma coisa linda que funciona
ali. Cada dupla de atores morava em uma casa,
e trabalhávamos no teatro, no material do
espetáculo. Às vezes saíamos para fazer algumas
excursões em outras cidades. Conhecemos
os penitentes de Barbalha, uma cidade próxima
dali; visitamos o Museu de Paleontologia,
numa região rica em fósseis; fomos ver as
procissões em Juazeiro do Norte; enfim, tomamos
um banho de cultura sertaneja do Nordeste,
pois o sertão com o qual lidamos não foi exatamente
o sertão do livro, foi um outro sertão,
o nordestino. Essa viagem trouxe muito material
e definiu um caminho bem sólido para o
trabalho.

PALAVRAS IRMÃS

Eu não queria fazer uma tradução fiel da obra,
queria trabalhar sobre o que ela tem de mais
significativo. Então o Cacá Brandão fez um
primeiro tratamento, um primeiro recorte, do
qual eu parti e fui desenvolvendo e criando o
meu, até passar o meu para o Seu Geraldo, que
fez o dele, e começamos a estabelecer um diálogo,
para que ele colocasse do modo dele
coisas que me interessavam que ficassem ditas
no trabalho que eu estava estruturando cenicamente.

É bonito você ver quando uma coisa
se transforma em outras e nunca perde a sua
essência. Não há seqüência, não há as descrições
de natureza literária ou criativa do Rosa,
mas a essência daquilo. E eu tentava transportar
isso para o Seu Geraldo, como eu tento
transportar isso para os meus atores e para o
meu cenógrafo, o meu iluminador, para a
sonoridade do meu espetáculo. Seu Geraldo
Alencar, sobrinho e parceiro de Patativa do
Assaré, foi com certeza um presente que o
sagrado me deu: fazer com que aquele homem
aparecesse na minha frente e, juntos, fizéssemos
tudo isso (quer dizer, juntos na medida
em que eu tentava explicar para ele a obra, eu
lia, contava a história, e ele se maravilhava, e
a partir daí ele traduzia em rimas). E eu dizia
assim: “essa palavra é boa, mas você não pode
usar esta aqui que é do Guimarães?” E ele
assim: “Essa não cabe, mas é a mesma coisa”
(risos). E eu falei “é verdade, é a mesma coisa”.
E ele falava: “é irmã”. O que você vai dizer
diante disso? Eu espero que de novo a vida
nos dê a oportunidade de reencontrarmo-nos
uma outra vez, para juntos tentarmos colocar
em poema, em soneto, novas idéias. Tirar da
cabeça para botar presa na grafia, para depois
ficar solta na boca. Essa é a maravilha. E aí há
um retorno, porque entra no ouvido de alguém
e vira um monte de coisa dentro da cabeça,
que ecoa na pele de alguém que arrepia, e aí
essa pessoa sai com esse negócio, encontra
com alguém na rua, fala pela boca dela um
pedaço daquilo que ela sentiu, que entra no
ouvido, é um percurso maluco. E tudo isso
vem do Guimarães. Então é como se a literatura
começasse a ficar viva, viva, viva. Sai do
livro e fica viva, viva.

UM DOS NOMES

A provisoriedade é a qualidade maior de tudo.
No entanto, nós erramos por acreditarmos que
somos completos, inteiros, para sempre. Somos
iguaizinhos a uma formiga, absolutamente
iguais. A diferença é muito pequena. Temos
algo que os animais não têm, que é essa coisa
chamada inteligência, de que não usamos nem
10%. Então é mínima a diferença. A gente não
está acabado, entende? Eu sou a partícula de
um fragmento de um processo evolutivo muito
maior. A maravilha é grande, é infinitamente
grande, e nós somos infinitamente pequenos.
Existe maravilha nas duas coisas: no fato de
tudo ser infinitamente grande e no fato de
sermos infinitamente pequenos – e sermos
únicos, eleitos, escolhidos. Não é possível que
eu tenha vindo aqui para nada, ou para fazer
da minha vida um nada. E não é justo que os
meus, que estão comigo na aventura de viver,
que são tantos, é toda uma humanidade, não
percebam isso. Talvez eu tenha como tarefa
acordar aquele que está a meu lado. Então o
teatro para mim é um veículo. Guimarães
Rosa, nesse caso, eu uso como veículo.

O LIVRO NÃO EXISTE

Guimarães Rosa é um desses grandes homens
da grande literatura, que colocam em forma de
grafia uma idéia ou um conceito de mundo. E,
quando isso entra em você, por essa relação
privada, essa relação solitária que é o seu olho
e a palavra escrita do livro, essa coisa provoca
visões, provoca associações e lhe tira do lugar
onde você está, porque sua relação com o livro
é única, você sai imbuído disso para tentar
traduzi-lo de outra forma, para ver como você
consegue fazer alguma coisa a partir dessa
reflexão ou desse estado que a sua relação
com a literatura provoca. Você sai alterado. O
efeito de um livro é uma coisa devastadora. O
efeito de um autor. O livro na realidade não
existe, nenhum livro existe. Existe enquanto
objeto, enquanto história, enquanto fama, mas
o livro de fato só existe quando ele é folheado
e descortinado, e age solitariamente naquele
encontro entre o leitor e o objeto da leitura.
Ali ele vive. E quando ele é fechado, ele volta
a desaparecer. Mas o eco dele permanece em
você. Essa é a magia da literatura.

SERTÃO DE NORTE A SUL

O sertão, para mim, enquanto lugar geográfico,
literalmente está em toda parte. O sertão é
quase uma qualidade que se configura em
zonas geográficas. Reconheço o sertão no
olhar perdido de uma pessoa que está com o
cotovelo encostado no parapeito de uma janela
de uma casa abandonada, e ali eu falo:
“meu Deus, o sertão é tudo aquilo”. Eu reconheço
o sertão nas crianças do Cariri, enlouquecidas,
cheias de alegria, e percebo que a
perspectiva do crescimento cultural para elas é
reduzida, mas naquele momento elas estão
exultantes, explodindo de sertão, de alegria,
mas daqui a pouco elas mudarão, descobrirão
que a vida é um outro sertão, árido. Então,
geograficamente pode acontecer na Amazônia,
no sertão de um índio abandonado, no sertão
de uma pessoa que se encontra e se esconde
do mundo no meio do mato. E vejo que o sertão
é, por outro lado, esse matrimônio entre
corpo, essência desse corpo e lugar. O sertão
acontece porque ele precisa de um corpo que
o coloque enquanto sertão, nem que seja de
quem olha o vazio – já não é vazio só pelo
fato de estar olhando –, quando a essência
daquela pessoa percebe, o corpo daquela pessoa
percebe, e aquele lugar. Esses três ingredientes
compõem o sertão. E aí eu me reconheço,
quando eu percebo essa coisa inteira. O
sertão é inteiro. O sertão não é meio, não é
metade, entende? É inteiro. O sertão é uma
coisa cheia. Tudo o que não é sertão é vazio,
por isso que o sertão é a gente. O problema é
que a gente se esquece da gente, aí fica vazio
(risos). Eu me reconheci lá, mas me reconheço
aqui, me reconheço na Gruta do Maquiné, lá
dentro, no ventre de tudo. Me reconheço nas
duas ruas de Cordisburgo. E me reconheço
quando eu pedi para fechar toda a casa de
Guimarães Rosa para ficar andando nela sozinho,
onde ele fez o primeiro choro.

UM ESCOLHIDO

Acho que a nossa passagem por aqui tem que
servir para que nós possamos nos entender,
possamos tentar entender o mistério do tudo,
do todo, e talvez, aí, nós possamos contribuir
para que uma outra qualidade de homem apareça.
Eu acho que se nós começarmos a olhar
tudo com o olhar da poética, com o olhar do
pequeno, do simples, do direto, que é o que
propõe Guimarães Rosa, e, no entanto, absolutamente
profundo, uma nova qualidade de
homem aparecerá, e sua natureza maior será,
tão-somente, a de ser aquilo que ele veio para
ser: um admirador das maravilhas. Essa é a
coisa maior. Porque o reencontro consigo é o
grande caminho. O reencontro com a presença.
O reencontro com o fato de você ter sido o
espermatozóide que deu certo. Não é possível
que você, enquanto homem, não honre essa
vitória que você já é. Então você veio como
um escolhido, você não pode se tratar como
um menor.

• Este texto é composto de fragmentos das conversas de Paulo
de Andrade com Leonardo Ventura e Raquel Tamoio – atores
do Projeto Casa Laboratório – e Cacá Carvalho, diretor do
espetáculo O homem provisório.

• O HOMEM PROVISÓRIO tem em seu elenco Dinho Lima Flor,
Fabiana Barbosa, Joana Levi, Laila Garin, Leonardo Ventura,
Majó Sesan, Marcelo Valente e Raquel Tamoio. Vários artistas
cearenses colaboraram na composição do espetáculo durante
a passagem do Projeto Casa Laboratório pela região do Cariri,
em setembro de 2006: o texto de Guimarães Rosa ganhou
tratamento acordelado do poeta Geraldo Alencar; o figurino
foi desenvolvido a partir do trabalho do Mestre Expedito
Seleceiro; a trilha sonora é uma parceria do rabequeiro Di
Freitas com a italiana Francesca Della Monica. Além disso, o
projeto acabou originando vários outros produtos, entre eles:
um documentário (Vozes do Cariri, de Massimo Verdastro);
um cd com a trilha original, uma exposição (com xilogravuras
de Nilo) e um livro (com os 120 sonetos de Geraldo
Alencar).


Fonte: Internet
Ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml

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