terça-feira, 3 de novembro de 2009

* CEM MEMÓRIAS DE PAISAGEM

.
Maria Inês de Almeida


Uma tristeza, esse começar de onde. Lugar
nenhum para o que sabíamos de coração
que estava sempre por vir. Os idiomas perdidos. Desde o início da jornada com eles a
gente pressentia que o caminho era difícil de
encontrar, quanto mais o que se procurava.

E nada tinha sido proposto claramente. O
que estava visível, apenas, umas caras ainda
sem expressão (cem paisagens?), e frases que
ouvíamos como clichês ditados pelos chefes:
vamos recuperar nossa língua perdida,
vamos resgatar nossa cultura, vamos ensinar
nossas crianças, vamos escutar os mais
velhos, vamos isso, vamos aquilo. E tanta
fraca promessa. Ninguém no Poder, afinal,
responderia por elas. Não tinha sido sempre
assim? Os índios nem existiam! Então aqueles
rapazes e moças dos Krenak, dos Pataxó,
dos Xacriabá, que buscavam os doutores da
universidade para saberem mais de onde
vieram e como seriam suas línguas, pareciam
fantasmas dos que haviam tombado
em antigos combates, cujas marcas se encontram
nas placas das ruas de Belo Horizonte.

Contudo, topamos caminhar com eles, procurar
o que? E até que começamos a entender:
ave, palavra. Teríamos que escutar.
Mesmo que estivessem apenas escritas em
algum antigo alfarrrábio, em arquivos das
cidades e vilas, ou ainda audíveis em conversas
de velhos e pajés, em cantigas
quase sumidas, em rezas incompreensíveis.
Toda língua são rastros de velho mistério.

Escutar, pois. Não é assim que se faz a
história e a literatura de todo lugar?

E, finalmente entendi que aqueles índios
me pediam para ajudá-los na grafia de
suas literaturas. O caminho que encontramos.
Um método de ouvir e copiar, até que
o escrito pudesse ser lido, quando a todos
fosse dado o direito de ler para além do
significado.
O sentido pode ser e não ser.
• • • • • • •

Aí chegamos a Guimarães Rosa.

Quando entramos a caminhar ao lado dos
ditos índios, numa espécie de arqueologia,
onde procurar suas línguas esquecidas à
força? Em pedras do Peruaçu? Em alguma
velha reza? Em lugar nenhum, mas vinda
em sonho de algum adoecido? Em algum
cartório por descuido? Em anotações de
algum explorador?

Nisto, encontramos dois textos que logo se
colocaram como pista de um possível liame
entre os traços, no que costumamos chamar
literatura brasileira e no que começamos
a chamar literatura indígena: “Meu tio
o Iauaretê” e “Uns índios (sua fala)”. Ambos,
provavelmente, iniciados em 1952, quando
Guimarães Rosa esteve viajando pelo sertão,
passando por Mato Grosso, ouvindo e
anotando. Nesta viagem, ele deve ter encontrado,
além dos Terena, outros índios que
não passavam na ocasião de caboclos.
Descendo o São Francisco, a partir de
Januária, os sertanejos já têm histórias e
linguagem dos Xacriabá.

Possíveis restos, litters, resíduos, imagens
sinestésicas deixadas no trânsito entre os
mundos. E de que mundos falamos?
Cruzamentos de paisagens diversas, esboroadas,
em desaparecimento: a mata fechada,
o rio doce, o cerrado, a caatiguinha, e
os trás-os-montes, o tejo-rio...

• • • • • • •

São João das Missões: norte de Minas,
entre Manga e Itacarambi. Aí fica a reserva
indígena Xacriabá. Dizem deles que são a
confluência de vários povos, inclusive africanos
e ibéricos, e que originariamente
haveria predominância em suas linguagens
de uma língua da família Jê (da família
Akuen). Nada se sabe ao certo. Ninguém
sabe o que é um homem. Mas o fato é que,
quando Guimarães por ali andou, em sua
famosa viagem com os boiadeiros, não se
reconhecia a presença de índios, pelo
menos oficialmente. A Terra Indígena
Xacriabá, embora território “doado” pela

Coroa Portuguesa desde o século XVIII, só
foi homologada após a expulsão dos últimos
posseiros, a partir do massacre de
1987. Antes, era até perigoso alguém se
dizer índio naquela região.

“Há, assim, três coisas que metem
medo.
A primeira é a mutação. Ninguém sabe
o que é um homem. Os limites da espécie
humana não são consequentemente
conhecidos. Podem, no entanto, ser
sentidos. O mutante é o fora-de-série, que traz a série consigo. (...)
A segunda é a Tradição, segundo o
espírito que muda onde sopra.
(...)

A terceira é um corp’a’screver. Só os
que passam por lá, sabem o que isso é.
E que isso justamente a ninguém interessa.
O falar e negociar o produzir e explorar
constroem, com efeito, os acontecimentos
do Poder. O escrever acompanha a
densidade da Restante Vida, da Outra
Forma de Corpo, que, aqui vos deixo
qual é: a Paisagem.
Escrever vislumbra, não presta para
consignar. Escrever, como neste livro,
leva fatalmente o Poder à perca de
memória.
E sabe-se lá o que é um Corpo Cem
Memórias de Paisagem.
Quem há que suporte o Vazio?
Talvez Ninguém, nem Livro.”

Maria Gabriela Llansol,
O Livro das Comunidades.

As histórias ouvidas e anotadas pelo escritor,
porém, certamente, fazem parte do
repertório dos Xacriabá. Levo à aldeia o
conto “Meu tio o Iauaretê”, e eles reconhecem
ali, claramente, uma versão da história
da Iaiá Cabocla, a onça-totem que protege
sua vida e sua terra. O finado Estevão
Gomes é o homem que se transformou na
Onça, que volta a cada vez que ela é chamada
a proteger a terra, sobretudo contra
os que sempre querem usurpá-la de seus
legítimos habitantes. Maria-Maria, a onça
que por força amorosa leva o homem a
transpor os limites da humanidade, lembrou-
lhes imediatamente Iá-Iá.

Depois lemos “Uns índios (sua fala)” e pensamos
na tradução, e no ensaio de Haroldo
de Campos “A palavra vermelha de
Hoelderlin”. Umas palavras cavadas no
amontoado de cultura sobreimposto, resistentes,
vislumbres da antiga língua Akuen
dos Xacriabá, vieram trazer à fala em português
a mancha necessária a que o idioma
indígena jamais desapareça. Guimarães
Rosa, neste apontamento publicado mais
tarde no livro Ave, palavra, percebe que a
tradução – sob as leis da transformação,
não do simples transporte – entre o mundo
indígena e a língua portuguesa tem como
princípio a descoberta. A surpresa do encontro
a cada palavra estrangeira. Uma vez em
processo de descobrimento, cada palavra
ou sonoridade fulgoriza nova natureza, que
se desvela na multiplicidade de mundos
nascentes e evanescentes: I’ti não sendo
apenas cor, mas sangue. Então vermelho se
literalizando como sangue de arara, verde
como sangue de folha. Ainda mais vero e
belo. Pensamos no tradutor que buscasse o
caminho da cópia, da sobreimpressão, dos
vivos no meio dos vivos, do mundo no
meio dos mundos, como Hoelderlin traduzindo
antiqüíssimas tragédias.
Na leitura dos textos de Guimarães Rosa, os
índios podem destituir da memória a história
do Poder. Nas anotações lingüísticas,
nos cadernos do escritor, intituladas tão
rascunhadamente “Uns índios (sua fala)”;
no nome da onça Maria-Maria; nas tantas
palavras tupis; africanas... a Língua também
é alíngua:

Ela lambe minha mão, lambe mimoso,
do jeito que elas sabem pra alimpar o
sujo de seus filhotes delas; se não, ninguém
não agüentava o rapo daquela
língua grossa, aspra, tem lixa pior que
a folha de sambaíba; mas, senão, como
é que ela lambe, lambe, e não rasga
com ela o filhotinho dela?

Assim encontramos um princípio onde
começar a busca pelas tão sonhadas línguas.
A escrita, como dela sempre disseram,
é urna secreta guardando os restos de falas,
mas nossa grande companheira na caminhada
é a dúvida, que traça no ar, sopro de
vida, o movimento do corp’a’screver. Como
diria Walter Benjamin, lemos o que não foi
escrito. Traição? Os Xacriabá, jogadores de
verso, hão de compor seu por vir.
O impossível encontro, que quanto mais
palavras nossas, mais longe a língua deles.
E foi daí que Guimarães silenciou.
INÊS DE ALMEIDA é escritora, autora de Doze trabalhos
de H (Bichinho Gritador, 1995) e 22 arcanos (Cipó Voador,
2005), professora de Literatura Brasileira da FALE/UFMG e
coordenadora do núcleo de pesquisas Literaterras. Coordena
a área de Múltiplas Linguagens do Curso de Formação Intercultural
de Educadores Indígenas da UFMG.

Este texto nasceu da experiência de leitura de dois textos
de João Guimarães Rosa – “Uns índios (sua fala)” e
“Meu tio o iauaretê” – com os índios Xacriabá.
Fonte: Internet
Para ver ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml

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